Vamos sair a jogar
“Sair a jogar” não é uma moda ou uma mania estilística, como usar calças bege ou dois botões abertos na camisa. É uma forma de atingir objetivos. Uma coisa é não o entender e outra é recusar fazê-lo.
É impossível ficar indiferente ao golo digno de apanhados que Jhonatan meteu na sua própria baliza, no Benfica-Rio Ave. O próprio guarda-redes brasileiro dos vila-condenses já teve de se defender dos insultos que lhe chegaram pelas redes sociais – e isso é só um sinal dos tempos de intolerância que vivemos –, mas o que me interessa aqui não é mandar palpites sobre se ele foi incompetente ou corrompido. Que esteve mal é evidente, que tenha sido corrompido já me parece altamente improvável. O que me interessa mesmo é fazer entender as razões pelas quais há cada vez mais equipas a usar os guarda-redes e a promover a saída curta, a jogar desde trás. Porque, ao contrário do que argumentam os resistentes, isso é muito mais do que uma moda ou uma mania dos treinadores armados em modernaços para ficarem bem na fotografia.
Há uma série de traços que servem para caraterizar o futebol de uma equipa. Para o analisar, há quem se centre no sistema tático, na altura em que se colocam o bloco defensivo e as zonas de pressão (mais à frente ou mais atrás), na distância entre linhas (que influencia a zona do campo onde se colocam a primeira e a última delas), no tipo de marcação (zonal pura ou individual em certos momentos), na concentração de mais unidades por dentro ou na sua distribuição mais igualitária pelo campo, ou ainda na forma como se promove a saída de bola. Para criar, que é o que fazem os treinadores, há que pensar nisto tudo, porque isto está tudo ligado. Se uma equipa opta por assumir o risco de sair curto atrás, mantendo a bola perto da sua baliza – a ponto de uma perda poder gerar um golo para o adversário – não o fará seguramente só para o seu treinador dizer que é um tipo moderno, que tem pinta e joga um futebol positivo. Até porque, convenhamos, sair curto atrás não é necessariamente sinónimo de futebol positivo. Pode ser e pode não ser. Como sair longo pode ser e não ser também: Cruijff era um treinador positivo e no seu Ajax do final dos anos 80 o guarda-redes Menzo era importante na construção precisamente porque colocava a bola com precisão assinalável no jogador que no momento estivesse mais longe dele, dessa forma superando logo inúmeros adversários.
Podia dizer que o problema foi o surgimento de treinadores conceptuais, que se sobrepõem às suas próprias ideias e que por isso criam modas – quantas vezes já se ouviu que o treinador tal “agora anda armado em Guardiola”? Mas não, disso sempre houve. Guardiola e o “Tiki-Taka” ou Klopp e o “Gegenpressing” não são hoje mais conceptuais do que foram no seu tempo Sacchi ou Cruijff. Ou, para recuarmos ainda mais nesta história, do que foi gente como Kovacs, Liedholm, Herrera, Rappan ou Chapman. O que mudou, sim, foram as ferramentas de análise, levando à vulgarização do conhecimento e à criação de uma cultura pop à volta dos maiores pensadores, que atualmente são explicados com muito mais facilidade. Se Chapman ficou na história como o criador do WM, isso nunca passou de uma abstração que as pessoas ouviam contar nos pubs onde se discutia futebol e mais tarde leram nos livros de história, mas nunca puderam avaliar. O mesmo serve para o Ferrolho de Rappan ou para o Catenaccio de Herrera. Até para observar o futebol total de Kovacs ou a zona-pressing de Liedholm ou Sacchi é precisa uma enorme dose de boa vontade, a ver vídeos com uma definição que a nós na altura nos parecia ótima mas que os olhos de hoje – muito mais exigentes – já não acham válida.
A questão é que se a análise foi democratizada pelo vídeo e pela disponibilidade da literatura – que trouxe até ao jornalismo e ao comentário de futebol a proliferação de termos que há 30 anos eram meramente académicos, como transição, basculação, zona de pressão, variação de centro de jogo, passe de rutura, ataque à profundidade ou desmarcação de apoio... –, a criação ainda o é mais, pelo acesso a inúmeras ferramentas partilhadas entre treinadores, onde são feitos, por exemplo, os vídeos curtos usados para explicar processos aos jogadores. Achar que um treinador promove a saída curta para se armar ao pingarelho em tertúlias de sabichões é negar o trabalho dos treinadores. De todos os treinadores. É achar que treinar passa simplesmente por meter uns rapazes a dar uns chutos na bola, escolher os onze que tiverem mais jeito, mandá-los para dentro do campo e dizer-lhes algo poético como “agora divirtam-se a jogar” ou em alternativa puxar-lhes pelo arreganho com tiradas como “hoje é para comer a relva”. Não é. Ainda que até isso tivesse o seu quê, é bastante mais do que isso.
Por muito que custe a entender a quem se recusa a estudar futebol – porque quem o quiser entende-o facilmente – sair curto desde trás tem como objetivo abrir espaço mais à frente, chamar a primeira linha de pressão do adversário a zonas mais avançadas do campo para, das duas uma, ganhar espaço entre linhas uma vez superada essa primeira linha de pressão ou ganhar espaço na profundidade atrás da última linha se o adversário adiantar todo o bloco e mantiver o espaço entre linhas.
E é aqui que surge a pergunta mais habitual num mundo que de repente se tornou dual: e é melhor a saída curta ou a saída longa? Vale a pena esse risco? Não há resposta. Depende. Depende do que os jogadores de uma equipa fazem melhor. Depende da capacidade da equipa técnica para os aperfeiçoar através do treino. O Adán que chutou contra Alexis e causou a derrota do Sporting em Marselha é o mesmo Adán que participava na saída curta seguida de ataque à profundidade que foi uma das armas dos leões no ano em que foram campeões. Às vezes há dias maus. Que o diga Jhonatan.
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