Os cães de guarda ferozes
Menotti usava a parábola do cão de guarda e do cão feroz para postular a superioridade da zona face à marcação individual. A modernidade trouxe novos conceitos. Como os cães de guarda ferozes.
A história é de Cesar Luis Menotti, antigo selecionador argentino, campeão do Mundo em 1978, e um dos pais do jogo positivo na dialética maniqueísta em que os amantes de futebol argentinos o opõem, por exemplo, a Carlos Billardo, campeão do Mundo em 1986 com um jogo muito mais utilitário. Menotti, que apaixonava pela forma como usava parábolas para expor as suas ideias, comparava um cão de guarda a um cão feroz, colocando os dois à porta de uma casa. Se lá chegava uma quadrilha de ladrões, enquanto o cão feroz se atirava a um e o perseguia, mesmo que ele fugisse rua abaixo, dessa forma deixando a porta livre para que os outros entrassem e roubassem o que quisessem, o cão de guarda ladrava e continuava a guardar a porta, impedindo o assalto.
A história era a forma ilustrada que Menotti encontrava para explicar a néscios as vantagens da defesa zonal face à marcação individual e era perfeita para enquadrar o mundo dual dos anos 70 e 80. Hoje já não é assim, porque a modernidade trouxe um novo tipo de cães: os cães de guarda ferozes. E, além de haver quem aplique a defesa individual a todo o campo, nem por isso parecendo que saiu de uma caverna – Bielsa, Gasperini... –, cada vez há mais equipas que adotam um sistema misto: individual quando vão apertar na frente, zonal quando baixam o bloco e entram em organização defensiva. Foi isso que Jorge Jesus fez no Benfica, tanto na época passada como na atual, ainda que com resultados pouco conseguidos. Falei com Jesus para que ele me ajudasse a ter alguma luz sobre esta forma de defender, mas ele escusou-se. “Desculpa, mas não gosto de falar da operacionalidade das minhas ideias”, disse-me o treinador, que saiu do Benfica em Dezembro. “Mas eu já fazia isso na primeira passagem pelo Benfica”, acrescentou.
Durante décadas, no que ao sistema defensivo diz respeito, os treinadores de futebol de alto nível dividiram-se entre duas escolas: marcação individual versus marcação zonal. A primeira tem como referência o adversário direto e, diz a anedota, manda cada jogador perseguir o seu opositor, mesmo que ele vá à casa de banho. Ainda recentemente Fernando Santos, o selecionador nacional, se referia a instruções dadas nesse sentido por Jimmy Hagan, que foi tricampeão no Benfica do início da década de 70 e depois o treinou no Estoril, já no final dessa mesma década. A segunda tem como referência uma zona, responsabilizando cada jogador pela defesa dessa mesma zona, que varia tendo em atenção a posição da bola. Durante décadas, os críticos associaram a defesa zonal à modernidade e ao progresso a individual à antiguidade e ao marasmo. A primeira era liberdade e a segunda era repressão. A primeira era “de esquerda”, a segunda “ de direita”, conforme definição de Jorge Valdano, convicto “menottista”. Durante décadas, os treinadores que colocavam as suas equipas a defender à zona eram vistos como profetas do jogo positivo, uma espécie de homens vindos do futuro, enquanto os que optavam pela marcação individual eram olhados como autênticos homens das cavernas, vindos de um passado que o futebol erradicara. Eram os progressistas. Hoje já não é tanto assim. Há uma terceira via a ganhar espaço entre os treinadores de elite.