Vamos deitar, que as visitas querem ir embora
Multiplicam-se os sinais de que Ronaldo é segunda opção no Manchester United, onde está toda a gente à procura da forma subtil e respeitosa de colocar um ponto final na festa.
Há uma expressão curiosa na língua portuguesa, com a qual se pontuam reuniões de amigos que se prolongam mais do que deviam. “Vamos deitar, que as visitas querem ir embora” é a forma bem-humorada dos anfitriões dizerem a todos que está na hora de colocar um ponto final na festarola. E, basicamente, é isso que Erik Ten Hag tem dito a Ronaldo, quando o deixa no banco em jogos importantes, como o dérbi contra o Manchester City, e depois o coloca de início contra os cipriotas do Omonia Nicosia, numa partida de baixo perfil, da Liga Europa. A ação do treinador neerlandês tem levando à indignação de ex-colegas e comentadores, como foi o caso ontem de Paul Scholes. “É um desrespeito”, clamou o antigo médio na BT Sport, a mostrar que é daqueles que, na reunião de amigos, responderia imediatamente aos donos da casa: “Não queremos nada!”
Assinalam-se hoje 20 anos exatos sobre os primeiros golos de Cristiano Ronaldo pela equipa principal do Sporting. Foi contra o Moreirense, a 7 de Outubro de 2002, no antigo Estádio José Alvalade, e o miúdo não só bisou como mostrou que era um predestinado quando abriu a conta numa jogada individual em que sentou vários opositores antes de bater João Ricardo. Eu estava lá, ao serviço do Record. Primeiro recordei o que, em off, me tinha dito Laszlo Bölöni sobre Ronaldo, no início dessa época: “Vai ser tão bom ou melhor que Eusébio!”. No dia seguinte, lembro-me do entusiasmo com que, na redação, mostrei o lance ao Régis Dupont, o jornalista do L’Équipe que desde essa altura acompanha o futebol português e que acabara de chegar a Lisboa. Queria espalhar a boa nova, provar-lhe que havia uma nova sensação no futebol português, um miúdo que marcava golos à Maradona. E para o fazer não usei o telemóvel ou a internet no computador – fui à secretaria de redação pedir a cassete VHS em que estava a gravação do jogo e dirigi-me ao gabinete do José Manuel Delgado, que era o diretor do jornal, onde havia um daqueles televisores com leitor de vídeo incorporado. Nunca viram? Ora aqui está a prova de que esta “reunião de amigos” já dura há bastante tempo.
A um dia do 20º aniversário dos seus primeiros golos, Ronaldo fez ontem um jogo bastante competente, em Chipre. Não marcou por pouco, mas fez uma assistência e pareceu bem ligado à equipa. Isso não chega, porém, para os admiradores e amigos que jogaram com ele. “É mais desrespeitoso meter o Cristiano a jogar numa quinta-feira à noite, num jogo da Liga Europa [do que fazê-lo entrar ao intervalo do dérbi de Manchester, já com o resultado em 4-1]”, disse Paul Scholes, em resposta às declarações de Ten Hag, que no fim-de-semana justificou com o respeito pela carreira do português o facto de não ter recorrido a ele no descalabro em que se tornara o desafio contra o City. “Estamos a falar de uma estrela mundial. Não digo que, aos 37 anos, ele tenha de começar todos os jogos, mas é difícil encontrar motivação nesta prova”, prosseguiu ainda Scholes. A questão é delicada, mas Scholes não tem razão. Primeiro, porque a Liga Europa – antiga Taça UEFA – não é uma competição menor. Depois, porque se trata da competição para a qual pôde qualificar-se o Manchester United, com Ronaldo quase sempre como titular na última edição da Premier League. Por fim, porque é o treinador que tem de decidir com quem quer ir a jogo em cada momento. E aqui pode concordar-se ou discordar-se das opções, mas nunca com base em conceitos como o respeito.
Ten Hag – e Fernando Santos, se falarmos da seleção nacional – escolhe a equipa de acordo com a estratégia que define para cada dia e, embora tanto um como o outro estejam bem conscientes das implicações de ter Cristiano Ronaldo no banco, não podem colocá-lo a jogar por “respeito” à carreira do craque português. Porque fazer isso seria, sim, faltar ao respeito a quem justifica a titularidade com trabalho nos treinos e um melhor rendimento nos jogos e até aos interesses do próprio clube. Não faço parte dos que decretaram já o fim a Cristiano Ronaldo, porque ainda lhe vejo a vontade de competir e condições para o fazer, mas entendo as opções de Ten Hag – como entendo as de Santos, que certamente abordará o próximo Mundial com ele no onze. Mas já me faz alguma confusão que, depois, o neerlandês afirme que não o fez sair do banco para não lhe faltar ao respeito ou que o português não o substitua durante um jogo, mesmo quando parece evidente que é isso que o desafio está a pedir, e que mesmo não o dizendo se perceba que o não faz pelas mesmas razões. Aqui caberá a Cristiano Ronaldo, conhecedor do jogo como poucos, porque nele anda há mais de duas décadas, ter a noção do que cada momento pede. Ter a noção de que ser útil à seleção neste momento passa também por um banho de humildade que lhe permita entender que há momentos em que deve dar o lugar a outros. E ter a noção de que a festa em Old Trafford chegou ao ponto em que os anfitriões querem mesmo é caminha e que prolongá-la só vai criar situações desconfortáveis para os dois lados.
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