O regresso à inocência
Os acontecimentos do Tunísia-Mali mostram o que é o regresso à inocência e aos tempos em que a frieza da tecnologia não contaminava o romantismo do futebol. Lembrem-se disso quando se queixarem.
Os rocambolescos acontecimentos do Tunísia-Mali, ontem, na Taça de África das Nações, são exemplo perfeito daquilo que está em causa sempre que vejo reclamar o regresso à pureza e à inocência do futebol de tempos passados. A mim, que tenho estado a pesquisar e historiar os 100 anos de competições de futebol nacional em Portugal, que se celebram já em Junho, a cena pareceu-me estranhamente atual, porque tenho bem presentes leituras sobre coisas semelhantes e outras ainda mais pitorescas. O problema quando pedimos o regresso destes tempos mais românticos em que o VAR não desvirtuava a emoção, em que o futebol-negócio não era tão impositivo e por isso não forçava o controlo por parte da indústria, é que há sempre quem saia prejudicado. É por isso que o tempo não volta para trás e este tipo de situações tem de ser erradicado para os livros de história.
Para quem não sabe o que se passou, eu explico. Ontem, no Tunísia-Mali, a contar para a fase de grupos da Taça da África das Nações, tendo a segunda parte do jogo tido dois penaltis, cinco substituições, uma pausa para hidratação e uma interrupção para análise de imagens apresentadas pelo VAR, o árbitro, o zambiano Janny Sikazwe, apitou para o final da partida aos 85’. Provavelmente alertado pelo VAR ou pelos protestos dos tunisinos, que perdiam por 1-0, aceitou prolongar a partida por mais quatro minutos, acabando-a aos 89’, mais uma vez com protestos enérgicos dos derrotados. Meia hora depois, os responsáveis da Confederação Africana de Futebol interromperam a conferência de imprensa do treinador vencedor para informar que se jogariam mais três minutos, apelando às equipas que voltassem ao relvado – algo que a Tunísia se recusou a fazer, optando por pedir a impugnação de todo o desafio, uma forma mais plausível de dar a volta ao marcador.
Posso estar enganado, mas acho que muito mais do que um caso de desonestidade, o que está aqui em causa é um regresso ao passado, ao tal futebol romântico e sem o frio controlo da tecnologia que tantos adeptos passam a vida a reclamar. Se Sikazwe quisesse roubar, teria inúmeras formas de o fazer sem chamar tanto a atenção para a sua própria inépcia. Não assinalaria um penalti a favor da Tunísia aos 77’, por exemplo. Ou não expulsaria o maliano Touré, dez minutos depois, já após a sua primeira tentativa de acabar com o jogo. O árbitro não tinha falta de escrúpulos. Tinha, sim, um relógio avariado ou um compromisso ao qual não queria faltar. E, nem de propósito, este caso remeteu-me para tantos outros acerca dos quais tenho andado a escrever, no âmbito do F80, a série de artigos com que tenho celebrado o centenário do futebol de competição nacional em Portugal, que se comemorará em Junho deste ano – há biografias diárias de jogadores, sempre em dia de aniversário, às 15h, com recurso a cromos da época, daqueles vintage, e o resumo de uma nova temporada futebolística a cada domingo, às 12h30, com muitas histórias como esta.
Ainda ontem estava a ler nos jornais de 1931 sobre um jogo que o árbitro acabou 10 minutos antes do tempo, redundando na eliminação de uma equipa que o protestou e que, acabando por ver esse mesmo jogo repetido, depois ganhou o desafio de repetição. Esta história, entre outras da atribulada temporada de 1930/31, só estará ao vosso dispor no próximo domingo. Mas a leitura dos textos que já aqui estão no Substack – vou deixar links no final deste artigo, para que quem quiser possa experimentar – permite encontrar mais exemplos do que é o regresso a esse passado inocente e livre da tecnologia.
Os exemplos vão do árbitro que abandonou o jogo ao intervalo, forçando o recrutamento de um substituto na bancada, ao juiz espanhol que veio apitar um jogo decisivo, para evitar as contestações, e acabou a dar entrevistas nas quais até fez a apreciação individual dos jogadores das duas equipas. Do árbitro que, provavelmente por achar que os ensaios de penalidade do rugby deviam fazer doutrina no futebol, assinalou golo num lance em que, indo a bola a caminho da baliza, foi defendida com a mão por um jogador de campo uns bons metros antes de cruzar a linha. Ou das teorias da conspiração – somos fortes na matéria desde tempos imemoriais... – que fizeram escola depois da nossa eliminação dos Jogos Olímpicos de 1928, em jogo com o Egito no qual teremos marcado um golo não validado pela equipa de arbitragem, alegadamente porque quem vencesse aquele jogo iria depois jogar com a Argentina nas meias-finais e não só os argentinos tinham medo de nós – já tínhamos empatado com eles uns meses antes – como o interesse da organização seria ter a Argentina e o Uruguai na final.
A publicação destes textos tem gerado um fiel grupo de seguidores, que marcam sempre um lugar nas caixas de comentários das redes sociais para contabilizarem totais de campeonatos ganhos pelos seus clubes do coração, para me acusarem de estar ao serviço deste ou daquele, a limpar a imagem de um terceiro ou a manchar a de um quarto. Já disse e repito que isso não me interessa nada. A mim, o que me interessa na história, neste futebol romântico e sem tecnologia, do tempo do amor à camisola, é entre outras coisas aprender com os erros cometidos para que mais tarde não venhamos a repeti-los. Sorrio a ler estas histórias, como provavelmente muitos de nós sorrimos a saber ou a ver o que se passou ontem no Tunísia-Mali. Mas o nosso sorriso é uma injustiça para quem se sentiu e foi de facto prejudicado. Como dizem os brasileiros, “pimenta no c... dos outros é refresco”. Lembrem-se disso da próxima vez que pensarem em lamuriar-se acerca da tecnologia ou do futebol-indústria e do mal que ambos fazem à pureza do jogo.
A mulher disse-lhe que o jantar era arroz de cabidela..... Toda a gente sabe que o arroz de cabidela não pode esperar.....
Enfim, mais um episódio que em nada serve para enaltecer a CAN.
Se calhar o árbitro é que estava com “pimenta no c...” - just kidding 🤭