Boaventura e a justiça
A corrupção é sempre difícil de provar, como complicado será implicar todos os suspeitos aos olhos do público. Mas o silêncio da Liga e do Benfica sobre o caso de Boaventura começa a incomodar.
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A condenação, em primeira instância, de César Boaventura, por três crimes de corrupção ativa a ex-jogadores do Rio Ave no sentido de estes virem a favorecer o Benfica num jogo de 2016 coloca-nos perante dois tipos de problemas, que convém distinguir. O primeiro encaixa numa questão geral do estado de direito e relaciona-se com a presunção de inocência de qualquer suspeito e com o ónus da prova, que recai sempre sobre a acusação. Foi o que esteve ontem à vista de toda a gente na libertação dos três arguidos do caso que fez cair o governo regional da Madeira, depois de três semanas em detenção, por exemplo. O segundo problema é mais mundano, é um caso de perceção do cidadão comum acerca das culpas. Não é a adoção da justiça popular, que felizmente já não se usam o alcatrão e as penas dos livros do Lucky Luke, mas parte do princípio de que ninguém gosta de ver manchada a sua reputação e tem tudo a ganhar em limpar o seu nome ou a credibilidade do seu negócio. Sim, todos os arguidos são inocentes até uma condenação transitar em julgado e nenhum suspeito, por mais verosímil que nos pareça a sua implicação, pode ser arrastado para um processo a não ser que um juiz entenda que a acusação apresentou provas sustentáveis da sua implicação – e mesmo aqui, quando se chega ao juiz, há sempre alguma discricionariedade em causa, como se viu no tratamento radicalmente diferente dado ao caso-Sócrates assim que ele passou ao Tribunal da Relação de Lisboa. Os casos de corrupção são extraordinariamente difíceis de provar – e veremos como vai correr o recurso que a defesa de Boaventura já anunciou que apresentará – e dependem muitas vezes de arrependidos, de quem não aguenta a pressão e acaba por ceder à consciência, assumindo culpas. Foi o que aconteceu, por exemplo, no caso OM-Valenciennes, com um Glassmann atormentado e um Bernès impreparado para viver com a ilicitude. É raríssimo haver provas concretas, que nenhum corruptor com dois dedos de testa passa cheque, faz transferência bancária ou submete o ato de corromper a um contrato escrito. “Fulano de tal, adiante identificado como primeiro outorgante, compromete-se a fazer um penalti e um autogolo no jogo contra o clube tal, adiante identificado como segundo outorgante, e ainda a ser expulso e a bater com a mão no chão em sinal de aceitação deste acordo, devendo de seguida ser-lhe paga uma avultada quantia em dinheiro”... Quanto muito, se a coisa não é episódica e se torna sistemática – o que é mais grave, porque é sinal de que dura há muito tempo – pode ser aberta uma investigação com recurso, por exemplo, a escutas telefónicas, como aconteceu no Apito Dourado ou no caso Calciopoli, que afetou a Juventus. Mas esses são casos raríssimos. O normal é ficarmos todos a perguntar: “Mas alguém acredita que Boaventura andava a comprar jogadores para favorecerem o Benfica sem que o Benfica – ou Vieira, pessoalmente – o tivesse mandatado para tal?” É possível? É, claro que sim. É provável? Não, como é evidente. Ninguém no seu perfeito juízo oferece montantes superiores àquele que é o seu rendimento declarado de um ano de trabalho para falsear jogos a favor de um clube que não foi tido nem achado na matéria. Não sei se foi feito todo o possível para apurar o envolvimento ou a inocência do Benfica ou de Luís Filipe Vieira neste caso, mas quero crer que sim, que se foi até ao fim, por exemplo, na investigação da transferência de Nuno Tavares, o jogador do Benfica que não era sequer representado por Boaventura mas em cuja saída este reclama uma comissão de 800 mil euros – reconhecida como justa por Luís Filipe Vieira a posteriori, já depois de ter deixado o clube. Ou que se fizeram os cruzamentos possíveis de todas as contas apanhadas no processo do Saco Azul com as quantias chegadas às contas de Boaventura. E, a ter de facto sido assim, já nem me interessa nada o que têm a dizer o FC Porto ou o Sporting sobre o tema, até porque falam muitas vezes através de bonecos animados – como o faz o Benfica, de resto. O que me interessa aqui é saber qual é a posição oficial da Liga e do Benfica acerca de um caso que tanto mancha a credibilidade da competição que a primeira organizou e o segundo venceu e em que, a partir do momento em que um juiz decreta uma condenação como a de ontem, passamos todos a acreditar menos um pouco.
As promessas de João Neves. Diz João Neves, jovem craque do meio-campo do Benfica, que a vontade dele, “neste momento, é continuar”. “Depois, nunca se sabe. Não consigo prometer nada”, acrescenta. Como é evidente, de resto. Já escrevi aqui ontem que o maior desafio para a gestão de um clube português de topo, neste momento, é definir bem qual o jogador com autorização para sair a cada ano e convencer os restantes de que a sua vez há-de chegar, mas que por enquanto lhes cabe continuar a honrar os compromissos que assinaram. Essa escolha será feita de acordo com uma série de variáveis, uma das quais é a vontade do jogador – mas nem me parece ser a mais importante ou pelo menos tão importante como a apetência do mercado por ele ou a duração dos contratos, por exemplo, já para não falar na facilidade da substituição de cada um. A vontade de João Neves, neste momento, é continuar – e nem podia ser outra, que o mercado só abre no Verão e ele até renovou esta época contrato até 2028. Depois, nunca se sabe – e nem o clube nem o jogador podem neste momento admitir uma coisa diferente, sem saberem o que o mercado vai trazer. Entender isto antes de transformar a coisa em assunto já nos pouparia a tanta conversa acerca de coisa nenhuma.
Podemos ganhar a Liga Europa? Benfica, SC Braga e Sporting regressam hoje à UEFA, para se empenharem – ou não... – no play-off de acesso aos oitavos-de-final. Todos são favoritos. Os encarnados recebem um Toulouse FC que, apesar de partilhar o dono com o Milan (caso muito curioso, que escapou ao escrutínio da UEFA, a avaliar aqui ou aqui) e de ter à sua frente uma das eminências pardas do futebol na Europa, Damien Comolli (história a conhecer aqui), está em 14º lugar da Liga francesa, apenas um ponto acima da linha de água. Os minhotos terão a oposição do Qarabag FK, clube que representa como nenhum outro a identidade azeri e que até já jogou na Champions, mas que se vai reforçando com uma série de rejeitados da nossa Liga (e a história está aqui). E os leões, que terão pela frente o Young Boys, campeão da Suíça e provavelmente o mais complicado dos três adversários (a conhecer melhor aqui) não deixam de ser favoritos, mesmo contra as vicissitudes que implicará jogar a primeira mão num campo sintético. Não vejo na atual Liga Europa muitas equipas melhores do que as nossas. Haverá o Liverpool FC ou o Leverkusen e está o assunto arrumado, que metendo todo o empenho no jogo estas não são inferiores a Brighton, West Ham, Atalanta, Milan ou AS Roma. A questão, aqui, é sempre de prioridades. Se for preciso, o que pesa mais? O campeonato, a possibilidade de vir a garantir a presença na próxima Liga dos Campeões – que também se atinge ganhando a Liga Europa, por sinal – ou a esperança de glória internacional? E o que é mais atingível? É por aí, pelo capítulo do investimento na competição, que deve ser antecipada a presença portuguesa na segunda prova da UEFA. Porque se a Champions não é claramente para nós, a Liga Europa podia até ser.
Perder com menos um. Um dia há-de ser altura para discutirmos mesmo a questão do tempo útil de jogo, o papel das faltas assinaladas e pedidas, das assistências médicas necessárias e forçadas nesse fator. Hoje ainda não será o dia. Por hoje, basta ouvirmos o que disse ontem Imanol Alguacil, o treinador da Real Sociedad, acerca do lance do primeiro golo do Paris Saint-Germain, na partida da Liga dos Campeões. Marcou-o Mbappé, num canto, em momento no qual os bascos estavam com menos um, porque Traoré ficara deitado na jogada anterior e por isso foi retirado do campo para ser assistido. “Não consigo entender como é que um jogador que teve de sair antes de um canto para ser assistido não foi depois parar ao hospital”, lamentou-se Alguacil. A mensagem vem de um treinador de uma equipa que joga futebol – e bem. Mas não chega para erradicar da cabeça dos jogadores a manha, o recurso ao expediente que só prejudica o futebol. E que neste caso prejudicou a equipa e vai seguramente prejudicá-lo a ele.