Um problema de egos
O Sporting está neste momento numa encruzilhada de saída árdua, porque implica renegar certezas. As de João Pereira no seu futebol de autor ou as de Varandas na escolha do sucessor de Amorim.
Palavras: 1267. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
O empate do Sporting em Barcelos, ontem, com o Gil Vicente, deixou o primeiro lugar da Liga à disposição do Benfica, que certamente fará da antecipação da receção ao Estoril, hoje, uma espécie de festa de Natal que “só” faltará, depois, cumprir em campo. Frederico Varandas já disse durante a semana que a escolha de João Pereira para substituir Ruben Amorim foi a mais acertada e que é para manter, mas até ele terá já sentido, ontem, na tribuna de honra, que só está a empurrar com a barriga uma decisão inevitável à espera de uma noite salvadora que se calhar nunca chegará. Se isto lhe servir de consolo, também eu estou convencido de que João Pereira vai dar treinador, com a diferença de que tenho a certeza de que não vai ser agora, porque lhe falta tudo aquilo de que a equipa do Sporting necessita no contexto presente. Que nunca foi de ideias novas, lutas pela afirmação e pelo reconhecimento do mérito ou de uma diabolização do anterior líder, que é o que vai seguir-se na cartilha das justificações de quem não entende que isso só agravará a crise de confiança de jogadores que, acima de tudo, se sentem órfãos e abandonados.
Os adeptos, neste contexto, gostam muito de generalizar e ainda há dias um amigo me dizia que este Sporting “não tem uma ideia”. Respondi-lhe que tem, que João Pereira não é um tolinho a quem deram um Ferrari. O treinador do Sporting está atualizado e tem futebol de autor, que o 3x4x3 com losango a meio-campo é uma tendência recente por essa Europa e se ele o está a aplicar é porque o estudou e estava atento. Este Sporting, portanto, tem ideias. O que se passa é que, como já escrevi algumas vezes (a última foi aqui, mas já o tinha feito aqui ou aqui, a ponto de ultimamente parecer que este é um Substack monotemático), não são as ideias que convêm a este grupo de jogadores. O GoalPoint ainda ontem à noite fez um tweet (aqui) a realçar que o Sporting era a 11ª equipa da Liga que mais cruzava de bola corrida com Ruben Amorim e que agora, com Pereira, lidera este índice estatístico. Passou de uma média de 11,4 cruzamentos por jogo para 23,5, que são mais do dobro. O que, lá está, é uma ideia. Mas basta ver Gyökeres a finalizar cruzamentos no ar para perceber que, mesmo que eles lhe cheguem e que assim a percentagem de acerto aumente, essa não é a ideia de que ele mais precisa para manter a cadência goleadora que fez dele o avançado mais procurado da Europa neste início de época.
O problema deste Sporting não é de falta de ideias. É de ideias a mais. É de Frederico Varandas ter a ideia de que Ruben Amorim era apenas uma simples peça na engrenagem, que o segredo do sucesso era a máquina por ele liderada, o que o terá levado ao cúmulo da soberba quando disse, há um mês, na gala dos Rugidos de Leão, que se ria quando ouvia que agora é que se iria ver quanto valia esta administração, sem o treinador e sem o diretor desportivo. Hugo Viana, em rigor, ainda lá está, ainda que não se lhe tenha ouvido um pensamento sobre o tema, possivelmente por estar de saída para o Manchester City, onde encontrará uma crise igualmente gigante para resolver. E se a coisa já se complicava com tanta convicção pública de Varandas na sucessão que ele próprio decidiu, retirando-lhe o espaço de recuo de que agora precisa, piorou com a certeza de João Pereira de que também ele tinha uma ideia, a fórmula infalível para melhorar os resultados de uma equipa que liderava a Liga com onze vitórias em onze jornadas. João Pereira deixou ver o que lhe ia na alma na conferência de imprensa deste sábado, em que fez a antecipação do jogo de Barcelos. “Eu entrava, o Sporting continuava a ganhar e a jogar bem... O que é que o João Pereira fez? Nada. Deixou jogar e o mérito não é do João, mas sim dos jogadores ou do treinador que cá estava e deixou tudo. O João Pereira entrava e começavam a perder... A culpa é de quem? Do João Pereira”, disse. É verdade que o raciocínio serviu para explicar o conceito de “presente envenenado” a que Varandas aludira na entrega dos Prémios Stromp – e nisso ambos tiveram razão –, mas não me espantaria que ele fosse além disso e servisse para justificar as alterações feitas pela nova equipa técnica ao futebol do Sporting. E confesso que tenho muitas dificuldades para entender este racional, porque o que devia importar ao treinador era ganhar e não a quem pertenceria o mérito das vitórias.
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Como estão as coisas, nem Varandas tem espaço para reconhecer que se enganou nem João Pereira para admitir que mudou demasiados detalhes no futebol da equipa. E as narrativas que se seguem, na verdade, já estão aí, no espaço público. São as lesões. E sim, o Sporting teve uma onda de lesões gigantesca: ausências como as de Pedro Gonçalves, Nuno Santos, Morita, Bragança e Inácio não ajudam em nada, mas o importante será perceber com o departamento de performance por que razão elas aconteceram precisamente agora. São as arbitragens. E sim, o Sporting teve azar com várias decisões das equipas de arbitragem nos últimos desafios, mas também o FC Porto viu o árbitro e o VAR ignorar um penalti sobre Pepê em Moreira de Cónegos, ainda com 1-0, e não deixou de ganhar o jogo por causa disso. É Amorim, que não é assim tão competente – e a prova disso é que também apanhou três do Bournemouth, e em casa, ontem. Mas não só apenas uma equipa piorou de rendimento – o Manchester United já estava mal antes da chegada do português, mas o Sporting não, estava pujante antes da troca – como esse é um caminho muito perigoso, porque contribuirá para tirar aos jogadores a única certeza a que podem agarrar-se, que é a de que com uma condução competente, que parta de decisões que sejam as melhores para as suas caraterísticas e não de um ideal de futebol que não lhes serve, podem voltar a ganhar de forma repetida.
Acredito hoje que a ligação entre Ruben Amorim e aquele plantel era tão forte que suceder-lhe de imediato seria tarefa impossível. O sentimento de orfandade, de abandono, iria sempre tomar conta do grupo, o que levaria qualquer um a fracassar. A questão é que há momentos dos quais não se recupera – e o conjunto de resultados para o qual João Pereira contribuiu com o seu “cunho pessoal” é um desses momentos. Pereira não é incompetente, mas terá sido vítima do ego, da vaidade que o mandou ir à procura de mérito quando tudo o que tinha de fazer era aceitar que ele era dos jogadores e do treinador anterior. Teve, porém, a coragem de aceitar o “presente envenenado” de que falou Varandas, de servir de carne para canhão, de ser o corte epistemológico de que o Sporting precisaria para superar o trauma. Agora falta Frederico Varandas entender que não pode ser, também ele, vítima do ego que lhe sussurra que só toma decisões acertadas e aceitar que este caminho não o levará onde ele quer.
Até pode um dia, daqui a imenso tempo, aprender com os erros e dar treinador, mas os resultados no sub-23, na equipa B e na equipa principal, mostram o contrário. Porque usa um sistema igual ao que outros usam, não faz dele treinador. Não é usar uma tática que não funciona com os jogadores que tem, uma prova precisa de que é precisamente um "tolinho"?
Pois, fica a ideia que o JP veio na altura errada, o timming não era o seu, nem do Varandas e muito menos o do Sporting (e quem sabe, se do próprio Amorim). E agora? Vai-se continuar à espera que algo mude (quando os titulares lesionados voltarem), ou aposta-se numa alternativa (que é difícil ver qual seja) ?