Gyökeres e a proatividade
Não há forma mais impactante de analisar o que mudou no Sporting de Amorim para Pereira do que olhar para Gyökeres. O sueco deixou de ser servido e teve de fazer pela vida sozinho. Será inteligente?
Palavras: 1231. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
Há coisas no futebol de Gyökeres que são inegociáveis, como a capacidade física, que o levou, ontem, aos 115’ da eliminatória da Taça de Portugal, contra o Santa Clara, a lançar um sprint vertiginoso, da saída da sua área até à do adversário, para estar em condições de corresponder a um contra-ataque conduzido – e depois estragado... – por Harder e de meter um ponto final na conversa que, vista do lado do Sporting, já tinha tido mais meia-hora do que devia. Acabou por ser o sueco a dar o remate definitivo na disputa, com o golo que já marcara e que valera o 2-1 que perdurou até final. E ele mesmo veio depois desdramatizar as dificuldades sentidas pela equipa em campo, dizendo na flash-interview que não é possível “ganhar todos os jogos por 5-0”. Esse golo, nascido da perspicácia de aproveitar um mau passe de Venâncio para recolher a bola, tornear o guarda-redes e marcar na baliza deserta, foi quase a cópia do que ele fizera ao Boavista, no sábado, a recuperar uma má entrega de Pedro Gomes. E os dois lances enfatizam uma coisa que também devia ser inegociável mas que de repente passou a ser concessão habitual: a equipa deixou de jogar a pensar em Gyökeres, que teve de passar a ser proativo e a criar as suas próprias oportunidades. É justo? Até pode ser, que ele também terá de fazer pela vida. Mas, mais importante: é inteligente? Lamento, mas não, não é. Anular a maior arma ofensiva do futebol nacional para fazer “pequenos acertos” não é propriamente a minha definição de inteligência, a não ser que já se esteja a preparar a equipa para viver sem essa arma.
O avançado sueco chegou ontem aos 62 golos em 2024, isolando-se no quinto lugar da lista de recordistas mundiais de finalizações bem-sucedidas num só ano civil no século XXI. À frente dele estão o ainda atingível Ronaldo de 2012 (63 golos), o Ronaldo de 2013 e o Lewandowski de 2021 (69) e o indescritível Messi de 2012 (91). A exibição que Gyökeres fez ontem, como a que assinou contra o Boavista, no sábado, ou as que tinha feito antes, desde que João Pereira chegou à equipa principal, não permite que ninguém olhe para os jogos e diga que ele não se esforça, que não tenta, que não deixa tudo em campo – e isto vai diretamente para os que encontraram na saída de Ruben Amorim o desligar do interruptor, sugestionados pelo facto de o palavroso agente do jogador ter no Verão feito a sua continuidade depender da permanência do treinador. Não, Gyökeres não fez birra, não deixou de lado o empenho, mas começa a sentir dificuldades cada vez maiores para se mostrar a “besta” que era no Sporting de Setembro e Outubro. As quebras de forma são normais, sim. Porém, os responsáveis pela equipa teriam tudo a ganhar em analisar esta com rigor, em deixar de ver rios de mel em prestações coletivas que têm sido no máximo sofríveis, da mesma forma que aos adeptos valeria mais porem de lado as queixas que voltaram a destacar acerca das arbitragens para se centrarem naquilo que os leões têm produzido. Que, regra geral, tem sido menos do que era antes da troca de comandante.
Gyökeres marcou quatro golos nos sete jogos feitos debaixo das ordens de João Pereira. Dois foram de penalti e outros dois na sequência de recuperações de bolas mal passadas por dois adversários. Valem como os outros? Claro que sim, não é isso que está em causa. Nos últimos sete jogos com Ruben Amorim, contudo, o sueco tinha marcado onze golos – quatro de penalti, um de livre direto e seis na sequência de processos coletivos trabalhados para explorar as maiores qualidades dele. Foi o arranque em um para um depois do passe progressivo de Debast contra o Sturm Graz, uma jogada semelhante a passe de Quenda na partida com o Manchester City, como foram os lances de construção trabalhada com assistências – sempre feitas no corredor central – de Morita (com o FC Famalicão), Pedro Gonçalves (Estrela) e Trincão (Estrela, duas vezes). Só a vontade de se iludirem pode levar os treinadores leoninos a achar que esta baixa de rendimento goleador de Gyökeres pode dever-se ao facto de os adversários, não estando em desvantagem, baixarem as linhas e fecharem os espaços à progressão do melhor marcador desta Liga. Primeiro, porque, tirando o jogo com o Arsenal e o primeiro com o Santa Clara, nos outros cinco de que se faz a era de Pereira os leões estiveram sempre em vantagem. Depois, porque naquela série de partidas que fechou o período-Amorim, na qual Gyökeres marcou em cinco dos sete jogos, ele fez o primeiro golo leonino em três (Famalicão, Estrela e Manchester City) e assistiu para a abertura do ativo num quarto (Sturm Graz).
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A chave da questão está naquilo a que, também numa das flash-interviews de ontem, Harder chamou “pequenos acertos”. “Estamos só a fazer uns pequenos acertos e em breve estaremos outra vez bem”, disse o dinamarquês, que ontem inaugurou o marcador na sequência de um cruzamento de Quenda. Pois, um cruzamento, essa forma de chegar à baliza que o Sporting de Amorim pouco usava, provavelmente porque não era a que melhor servia o seu avançado de maior peso. Um dos “pequenos acertos” de que falava Harder pode ser a formação do losango interior com que este Sporting de João Pereira passou a responder à organização defensiva dos adversários. Ontem, essa forma geométrica apareceu com frequência, mais até na primeira parte do que na segunda ou no prolongamento: Hjulmand como vértice mais recuado, João Simões avançando para ser um segundo avançado, Trincão e Quenda no papel de médios interiores, muitas vezes com a responsabilidade de virem buscar a bola ao médio-centro e tão longe da área que não conseguem encontrar o ponta-de-lança com os passes que tanto o primeiro como Pedro Gonçalves tantas vezes faziam a servir Gyökeres. Se o adversário mete duas linhas próximas da área, como fez o Santa Clara, aos leões só resta sair por fora, pelos alas mais subidos. E cruzar. Depois os adeptos e até os treinadores queixam-se, como fez ontem Tiago Teixeira, o adjunto encartado que funciona oficialmente como principal, dos “autocarros” e do foco excessivo dos adversários na defesa da sua área, quando aquilo em que deviam pensar era que não foi no mês passado que se inventou essa forma de jogar e que há melhores e piores formas de a superar.
São os “pequenos acertos” que estão a secar Gyökeres – e isto tem uma série de camadas de análise subjacentes. Por um lado, certamente contribuirá para o desânimo crescente do ponta-de-lança sueco. Por outro, se ele continuar a cair de produção, certamente lhe baixará o valor de mercado. Por outro ainda, pode ser um exemplo de proatividade, de criação de uma forma de jogar sem pensar nele, já a preparar o momento da sua saída. Mas isso só faria sentido se esta estivesse para ocorrer já em Janeiro. O que, aparentemente, não é o caso. Ou é e ninguém disse nada?