Sete medidas para o futebol
Identificados os problemas que estão na génese da crise do setor, deixo-vos sete ideias para sete coisas que é urgente mudar. E estão quase todas intimamente ligadas umas às outras.
Começou oficialmente a temporada de 2022/23 no futebol português, setor que nos últimos anos tem sofrido uma acentuada erosão de espectadores nos estádios e onde a quebra de receita que ela provoca conduz a dois tipos de realidades: os clubes de dimensão média definham e não conseguem ser competitivos de uma forma consolidada e os clubes maiores entram numa vertigem descontrolada, na qual a necessidade de criação de mais-valias com transferências para equilibrar orçamentos faz deles reféns dos agentes e dos fundos de investimento, que manipulam o mercado e os mantêm presos a uma trela com a promessa de dinheiro fresco, mesmo sabendo que boa parte desse dinheiro têm de o gastar para alimentar a relação de dependência, mantendo-a sempre viva. Este artigo encerra uma série de três (já escrevi este e este, na semana passada), na qual refleti acerca da crise do futebol português. Hoje é dia de propor medidas.
É certo que, por razões que são em parte extra-futebolísticas e têm que ver com o tecido social do país, Portugal não tem grande capacidade para fazer nascer clubes pujantes longe dos grandes centros. Parte da questão nasce, de facto, da falta de cidades de maior dimensão, como as que existem em Inglaterra, em Espanha, em França, na Alemanha ou na Itália, mas não creio que isso explique tudo. A essa questão geográfica acresce uma tendência única no nosso país, de centralização em três emblemas das paixões desportivas de todo o país. De tudo o que li e investiguei, percebo que o grande crescimento de Benfica e Sporting se deveu sobretudo ao enorme sucesso da Volta a Portugal em bicicleta e da rivalidade existente na década de 30 do século passado entre José Maria Nicolau e Alfredo Trindade, dois heróis da estrada que levavam as cores dos dois clubes a todo o país, onde mais nada chegava – não havia TV e, além de serem insipientes, os jornais eram irrelevantes num país com tão elevada taxa de analfabetismo. Mas o verdadeiro crescimento do FC Porto, que se deu muito mais tarde, montou-se num surto de orgulho regional que, concorde-se ou não com as táticas usadas – e que Pinto da Costa ainda hoje repete, quando apregoa o “ódio do país ao Norte” – prova que é possível mudar o estado de coisas.
Mudar isso de uma forma global, no entanto, seria uma obra de engenharia social impossível de completar – teremos sempre a possibilidade de assistir a casos isolados de sucesso, mas o Mundo de hoje não se predispõe a esse tipo de manipulações. Por mais que nos lamentemos, vamos continuar a ter um país em que 95 por cento dos adeptos só querem saber dos três grandes, com os naturais reflexos que isso depois tem nos meios de comunicação comerciais – se os clientes só querem saber de alhos, vão vender-lhes bugalhos? Há, no entanto, coisas que devem ser feitas a partir do próprio futebol no sentido de melhorar o atual estado de coisas e de impedir que o redemoinho continue a puxar todo o setor para baixo de um modo inexorável. Aqui deixo sete, todas elas intimamente relacionadas umas com as outras, como podem ver a seguir.
Política de comunicação – Qual deve ser o objetivo de um clube? Ganhar jogos, em primeiro lugar, e campeonatos, depois, mantendo as contas equilibradas. Há quem veja a questão ao contrário e sacrifique tudo às margens de lucro, mas os clubes não são empresas que visem o lucro. Visam, sim, o equilíbrio financeiro, com ganhos desportivos. O problema, no entanto, está no polo oposto. Os clubes portugueses adotaram uma filosofia de ganhar a qualquer custo e, desde que sejam reis, não se importam de ser reis do lixo. A política de comunicação utilizada por todos, espalhando a suspeita sempre que não vencem, não apenas para salvar a face dos seus dirigentes como sobretudo para condicionar arbitragens, está a queimar tudo e a alastrar aos adeptos, graças à realidade social condicionada pelas redes sociais e pelo entretenimento televisivo que lhes copia a tendência destrutiva. No limite, o que os clubes estão a conseguir é que os seus potenciais clientes já não acreditem no setor e deixem de gastar dinheiro com ele. É neles que está o ónus, não na televisão comercial, que ao contrário deles prospera no meio do lixo, tal como o Facebook ou o Twitter prosperam no meio dos insultos que pessoas que nem se conhecem dirigem umas às outras a propósito de futebol. É fundamental que os clubes mudem já esta política de comunicação: uma das condições imprescindíveis para participar numa Liga que quer ser próspera devia ser a recusa de uma comunicação oficial a lançar suspeita e a obrigatoriedade de disponibilização de protagonistas – treinadores e jogadores – para presenças frequentes nos órgãos de comunicação, dessa forma iniciando uma estratégia de ocupação de espaço mediático com conteúdos mais virados para o jogo em si.
Modelo de governação – Um dos maiores problemas do futebol em Portugal é que não há quem zele pelo bem comum. A Liga, enquanto órgão regulador, não existe, porque quem manda nela são os clubes e, conforme demonstrei atrás, os clubes olham apenas para o seu umbigo. Urge que a competição profissional em Portugal tenha uma Liga forte, capaz de se impor ao interesse particular. Uma direção independente dos clubes, com poder executivo total durante um determinado período, correspondente ao seu mandato. Pedro Proença tem sido muitas vezes apontado como rosto da incapacidade da Liga, com alguma razão, porque está sempre mais focado na arte do compromisso do que no corte a direito que faz falta, mas é justo que se diga que grande parte desta incapacidade se deve à impotência provocada pelo atual modelo de governação. E, além de uma mudança estatutária, mudar isto também passa por dar à Liga a capacidade para mexer naquilo que os clubes mais temem: a receita de televisão. No dia em que a Liga puder fechar a torneira a quem não se comporta, negociando ela os direitos televisivos globais e distribuindo a receita, muita coisa mudará. É claro, no entanto, que enquanto não se resolver o primeiro ponto – a suspeição – muitas vozes se levantarão contra esta ideia e a reclamar a independência face ao “Mal”. “Era o que faltava, ser a Liga a negociar pelo meu clube!”
Televisão e horários – A Liga Portuguesa vive numa relação de dependência total do operador de televisão que tem os direitos de transmissão. É aí que está a génese dos horários idiotas a que se joga no nosso campeonato. Como a Sport TV quer ocupar a grelha e para isso precisa de jogos espalhados pelo fim-de-semana, em slots sucessivas, assistimos a jogos a acabar para lá das 23 horas em véspera de dias de trabalho, muitas vezes entre clubes geograficamente muito distantes, dessa forma alienando qualquer possibilidade de chamar adeptos visitantes ao estádio. Esta dependência é claramente prejudicial para os clubes e nem sequer é boa para o operador, que passa a transmitir partidas com bancadas vazias, sem som ambiente, a deixar ouvir o eco dos gritos dos jogadores, muito menos atrativas e dificilmente negociáveis no mercado internacional. Na generalidade das Ligas estrangeiras de sucesso, os clubes recebem menos dinheiro da TV se a bancada em frente à câmara principal não tiver uma determinada percentagem de ocupação, por exemplo. Mas, lá está: para fazer isso a Liga precisaria de negociar e distribuir ela própria a receita, de acordo com preceitos que ela mesma definiria.
Preços dos bilhetes – Os bilhetes para assistir aos jogos ao vivo são, sobretudo para adeptos visitantes, geralmente demasiado caros para a realidade portuguesa. Eu cresci a fazer 80 kms com o meu pai para ir ao futebol com regularidade e tudo aquilo era uma festa, que metia ir jantar a uma cervejaria no final. Hoje, fazer uma coisa dessas, condiciona seriamente todo um orçamento familiar. Mais uma vez, os clubes estão a pensar pequeno. Preferem ter pouca gente, para terem uma maior percentagem de apoio, a tornar o espetáculo mais acessível a quem vai lá gritar pelo opositor, mas com isso é todo um setor que perde volume de negócio. Porque ao contrário do que sucedia nos anos 80, em que tinhamos de ir a uma cervejaria comer no fim dos jogos, hoje em dia os estádios estão preparados para oferecer aos adeptos, locais e visitantes, uma experiência completa, com futebol, entretenimento, restauração e ainda a hipótese de vender merchandising. É tudo isso que os clubes deitam ao lixo com esta política de bilheteira. Isso e a possibilidade de criar clientes entre as novas gerações, porque os pais deixaram de levar os filhos e as filhas com eles devido às condicionantes económicas e daqui a uns anos, quando eles forem crescidos, já nem eles irão.
Segurança – Muita gente aponta questões de segurança como razão fundamental para não ir ao futebol. Escusado será dizer que a questão comunicacional tem aqui uma grande influência – se os clubes incitam ao ódio ao diferente, não podem depois espantar-se que as multidões organizadas de cores diferentes tenham predisposição a enfrentar-se, dessa forma afastando do estádio não só os espectadores neutros como os adeptos não radicalizados, que não estão para levar com aquilo e temem pela sua própria segurança. A solução não está na extinção das claques, que ajudam à criação de ambiente e, portanto, à rentabilização do negócio. Também não está na sua “guetização” em jaulas, que depois acabam sempre por ficar vazias. Passa pela sua normalização, por mais positividade na comunicação emanada pelos clubes em relação ao diferente e pela ação das forças de segurança, que não precisam para nada do cartão do adepto para identificar os prevaricadores e afastá-los dos estádios por longas temporadas. Não há melhor exemplo do que tem sido mal feito do que o tratamento dado aos funcionários da publicidade que agrediram jogadores no FC Porto-Sporting da última Liga. Pagam a multa e estão lá de novo para repetir a proeza, de que até se mostraram orgulhosos nas redes sociais. Culpa da Liga? Sim. Do seu regulamento disciplinar, que é feito e aprovado pelos clubes, que para tal pensam nos seus interesses e não no bem comum.
Qualidade de jogo – A Liga Portuguesa é o paraíso dos simuladores, disso se ressentindo a qualidade global do espetáculo. Fruto do escrutínio excessivo a que são sujeitos por tantos frames e contra-frames na televisão, os árbitros são, regra geral, demasiado defensivos na apreciação, apitando demais. Os jogadores apercebem-se disso e ao mínimo toque caem a pedir a falta. Os comentadores criticam o faltismo, as interrupções constantes, mas depois se há um toque não assinalado são os primeiros a dizer: “Há ali um contacto”. Precisamos de árbitros mais corajosos, de jogadores mais honestos e de comentadores mais informados e coerentes. Enquanto os não tivermos, continuaremos a ter jogos com 40 faltas, metade das quais só existiram na sanha simuladora dos futebolistas e na cabeça medrosa dos árbitros. E jogos com pouco tempo útil, com futebol pouco fluído, sempre a serem interrompidos, não são atrativos e não são vendáveis, nem cá nem no estrangeiro.
Quadros competitivos – Esta é a questão em relação à qual tenho menos certezas. A minha posição, aliás, evoluiu nos últimos anos. Sempre achei que reduzir a Liga de 18 para 16, 14, 12 ou até dez clubes seria apenas diminuir os beneficiários e condenar mais gente à difícil existência numa II Liga que tem muito menos receita e, portanto, capacidade para reter talento. Mas é tudo uma questão de dimensão. Se há dez anos o futebol português talvez justificasse 18 clubes, pela receita que gerava, neste momento já vejo com bons olhos a redução para 16. Acredito que os planos revolucionários de que muito se fala farão mais mal do que bem. Jogar com dez clubes a quatro voltas, por exemplo, tornaria o topo mais competitivo – teríamos muito mais clássicos – mas diminuiria o total de clubes com capacidade para segurar e empregar jogadores, dessa forma gerando a saída de mais e mais futebolistas de classe média e média alta para o estrangeiro, para outros campeonatos igualmente periféricos. Instituir um play-off, por outro lado, é uma injustiça para uma prova que se destina a premiar a equipa mais regular da temporada e não aquela que está melhor em Maio. Ainda assim, creio que esta é a parte que tem funcionado melhor no futebol nacional: a entrada das equipas B na II Liga é um sucesso, a criação do campeonato de sub23 e da Liga 3 igualmente. Faltará achar uma solução para impedir o afunilamento de candidatos a sair do Campeonato de Portugal.
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