Vamos pensar a crise do futebol
A Liga Portuguesa perdeu um terço dos espectadores no estádio em cinco anos. E se os preços para a ver na TV estão cada vez mais caros, é porque também não está a ser bom para os operadores.
Tenho acompanhado a justa luta dos adeptos de futebol pelo direito a serem pelo menos ouvidos acerca dos custos associados a ver futebol em Portugal, travada sobretudo nas redes sociais, e a cada dia que passa mais me convenço de que não há da parte de quem manda um pensamento sistematizado acerca do tema. É certo que a balbúrdia em vigor no que respeita à venda individualizada de direitos televisivos não ajuda, mas esse é quase o pecado original: a transformação do futebol em produto predominantemente televisivo e a total alienação dos interesses de quem quer ir ver os jogos ao estádio transformou a Liga Portuguesa numa prova quase clandestina, atrasada por um mercado que não é grande e que não tem mais por onde crescer. O futebol deve ser visto como um todo ao mesmo tempo atrativo e viável do ponto de vista financeiro e isso só se conseguirá com pensamento global sobre a matéria, que é coisa que não tem havido.
Quando os portugueses se queixam dos valores que vão ter de pagar esta época para ver os três canais que têm direitos de futebol – são 58 euros por mês, a acrescer ao serviço normal de cabo, para ter a SportTV, a BTV e a Eleven Sports e, se se for adepto de um clube que esteja na Liga dos Campeões, garantir que se vê todos os seus jogos – estão a deixar uma mensagem clara a quem manda. E a mensagem é esta: não há margem de crescimento neste mercado. O que é preocupante. Porque se formos olhar para os contratos televisivos de longa duração feitos pelos três grandes há sete anos, verificamos que estão muito abaixo do rendimento que é tirado por qualquer das cinco grandes Ligas. Mas vamos a números, que a coisa assim fica mais fácil de entender. É verdade que todos foram contratos de longa duração e preveem montantes anuais progressivos, mas em Dezembro de 2015 o Benfica vendeu dez épocas desportivas, até 2025/26, por 400 milhões de euros. O FC Porto vendeu doze épocas e meia por 457,5 milhões de euros e juntou-lhe benefícios de ocupação de espaços publicitários no estádio e nas camisolas. E o Sporting fez um negócio nos mesmos termos, pelo qual receberá um total de 515 milhões de euros.
Feitas as contas um bocado “à merceeiro”, porque os montantes são progressivos e são hoje maiores do que eram em 2015, quando o contrato foi assinado, mas será preciso descontar ali os valores dos espaços publicitários, o operador estará a pagar pelos direitos televisivos dos três grandes (nos 51 jogos da Liga, que a Champions é outra coisa) algo como 120 ou 130 milhões de euros anuais. Vamos supor que os outros 15 clubes do campeonato somados – e afinal de contas têm 45 jogos dos grandes por ano para vender – valem outro tanto. Numa perspetiva bem otimista, talvez a Liga Portuguesa possa justificar um investimento de 300 milhões de euros anuais por parte de um operador televisivo. Mas para o justificar, este tem de levar o organizador a cometer uma série de atropelos aos interesses dos adeptos, como obrigá-los a subscrever três canais, gastando um montante que corresponde a oito por cento do salário mínimo nacional, ou submeter-se a horários proibitivos, totalmente ditados pelos seus próprios interesses no estabelecimento de slots de transmissão. O que é, senão afastar adeptos visitantes dos estádios, a marcação de um Portimonense-Boavista para as 20h30 de um domingo ou de um GD Chaves-Vitória SC para as 21h15 de uma segunda-feira? Quem, no seu perfeito juízo, vai enfrentar as seis horas de estrada que tem pela frente depois de um jogo que acaba às 22h30 da véspera de um dia de trabalho?
É de admirar que, nesta realidade, ainda por cima com preços de bilhetes bastante elevados, a Liga Portuguesa venha perdendo espectadores nos estádios de uma forma consistente? Em 2021/22, só tivemos quatro clubes com uma média superior a dez mil espectadores por jogo – Benfica, FC Porto, Sporting e Vitória SC – e mais dois acima dos cinco mil – SC Braga e Boavista. Em contrapartida, sete acabaram abaixo dos 2.500 – Santa Clara, Portimonense, FC Arouca, Estoril, CD Tondela, Moreirense e B SAD. Há cinco anos, também só tínhamos tido cinco clubes acima dos dez mil espectadores – Benfica, Sporting, FC Porto, Vitória SC e SC Braga – e mais dois acima dos cinco mil – Marítimo e Boavista. Mas depois havia apenas quatro abaixo dos 2500: FC Arouca, Moreirense, Estoril e CD Tondela. Ao todo, de acordo com dados consultáveis no site da Liga Portugal, o campeonato de 2016/17 teve 3,6 milhões de espectadores nos estádios e o de 2021/22, cinco anos depois, teve apenas 2,3 milhões. Em cinco anos, perderam-se 1,2 milhões de espectadores. Um terço do total, transportando a nossa Liga de uma média de 11.839 espectadores por jogo para uma de 7.727 que nos deixa muito longe dos maiores campeonatos.
E o que é preocupante é que, mesmo com esta submissão total aos interesses da operadora, que estará a contribuir de forma importante para o dramático abaixamento das assistências no estádio da Liga Portuguesa, os tais 300 milhões de euros anuais que, sendo otimista, poderá render a venda centralizada dos direitos televisivos são demasiado curtos para tornar os nossos clubes internacionalmente competitivos. A Premier League inglesa fatura um total de quatro mil milhões de euros por ano, com a particularidade de ser o único campeonato de futebol europeu que já recebe mais dinheiro em direitos televisivos internacionais (50,9%) do que nacionais (49,1%). A Liga Espanhola anda ligeiramente acima dos dois mil milhões de euros anuais em direitos de TV, já com uma repartição muito interessante entre o que pagam os espanhóis (56,1%) e os estrangeiros (43,9%). A Bundesliga alemã anda próximo dos 1.500 milhões, a Série A italiana dos 1.100 milhões e a Ligue 1 francesa dos 700 milhões, recebendo todas entre 10 e 20 por cento de direitos internacionais.
A tarefa de quem manda deve ser pensar e descobrir por onde há espaço de crescimento. Em Itália, o dono do Torino, Urbano Cairo, que tem também vastíssimos interesses na área da comunicação social, tem liderado uma reflexão muito interessante motivada pelo facto de a Série A ter sido nos últimos anos ultrapassada pela Liga Espanhola e pela Bundesliga alemã em termos de receita, o que está a prejudicar a competitividade dos clubes italianos em geral. Em breve voltarei aqui ao tema, partindo da realidade que os clubes italianos estão a começar a combater para aquela para a qual os clubes portugueses tardam em despertar.