A indústria da suspeição
Se, em vez de promoverem o produto, as marcas de luxo começassem a dizer que o que é vendido pelas concorrentes é idêntico ao que há na feira, o que sucederia ao setor? O futebol português está assim.
António Salvador, o presidente do SC Braga, está a cumprir em Portugal o papel de alerta de consciência que foi desempenhado há dias em Itália por Urbano Cairo, dono do Torino e do grupo de comunicação RCS, que inclui, por exemplo, a Gazzetta dello Sport e a Marca. Goste-se ou não da personalidade – e eu já lhe critiquei algumas declarações pós-jogo que fez em noites que lhe correram pior – Salvador tem um mérito: é o primeiro entre os presidentes de topo a abordar a crise do futebol numa perspetiva positiva e construtiva. Bruno de Carvalho já o fez tentando arrasar os alicerces em cima dos quais estava montada toda a organização do futebol, Frederico Varandas também, centrando-se exclusivamente na influência de Pinto da Costa, o último dos dinossauros que construiu o atual estado de coisas, mas ambos deram sempre a ideia de, pelo menos nas intervenções públicas, serem mais movidos a maus resultados do que a uma genuína vontade de mudar. Salvador terá apresentado ideias na Liga e é pena que não as tenha tornado públicas, pois é urgente que a discussão de medidas substitua a suspeição permanente como tópico de debate no futebol nacional.
Basta olhar para as reações dos leitores ao Último Passe de ontem – “Vamos pensar a crise do futebol”, que pode ler aqui – para verificar que a maioria dos que o comentaram nas redes sociais atribuem essa mesma crise a um só fator: a Liga é permanentemente falseada por corrupção e tráfico de influências. Mas essa noção, nascida do alastrar ao público da narrativa convenientemente espalhada por clubes que perdem, através das suas vigorosas agendas de comunicação, depois difundidas pelo comentário engajado nos programas televisivos da especialidade, é uma das razões mais profundas para a crise. No fundo – e perdoem-me o centralismo – é como se em vez de promoverem os seus produtos, todas as marcas de luxo com loja na Avenida da Liberdade preferissem denegrir o que é vendido pelas concorrentes, dizendo que é igual ao que há na Feira do Relógio. Se potenciado por meios de comunicação global, o resultado seria fácil de adivinhar: os clientes deixariam de ter razões para gastar dinheiro ali, passariam a preferir comprar nas feiras e logo se abriria uma crise no setor do luxo.
Há erros de arbitragem no futebol? Há, claro. Há corrupção e tráfico de influências? Suponho que sim. Se há em qualquer área da sociedade, por que carga de água é que o futebol iria escapar. Mas de uma coisa não tenho a mais pequena dúvida: há hoje muito menos erros do que há 40 anos, quando comecei a ver futebol, e muito mais meios de escrutínio para afastar a corrupção e o tráfico de influências do que nessa altura. O que há, também, é uma indústria montada em torno da suspeição, que está a destruir o valor do produto. E no eixo formado por clubes, adeptos e comunicação social, não há inocentes. É fácil disparar contra as estações de televisão, mas elas mostram aquilo que os adeptos querem ver e acabam por dar o que os clubes querem que elas deem. Se os adeptos quisessem diferente, não viam e aquilo não teria tanta audiência. Se os clubes quisessem diferente, não encheriam os seus canais próprios e as suas newsletters com essas narrativas e, em contrapartida, disponibilizariam os craques e os treinadores para estarem presentes no espaço de discussão pública com mais frequência. Essa é uma das medidas que pode transformar o futebol, ainda que não a curto prazo, que vai ser difícil convencer quem hoje acredita que “isto está tudo comprado” de que afinal vale a pena gastar dinheiro com o futebol.
Há pelo menos uns 20 anos que me bato pela obrigatoriedade de os clubes ocuparem o espaço mediático com as suas estrelas. Isto é uma guerra em que tanto pode haver interesses opostos como não, mas em que na maior parte dos casos não há. Aos jornalistas nunca pode ser pedido que silenciem seja o que for, deve ser-lhes exigido que investiguem e apresentem os resultados dessas investigações com responsabilidade – que vai muito para lá da “fonte próxima de...” – mas na maior parte dos dias são os clubes e a Liga que têm de decidir o que fazer com a exposição mediática que por enquanto têm garantida. Querem aproveitá-la para promover o produto ou para lhe destruir o valor espalhando a suspeição que lhes salve a face em caso de maus resultados? A presença de um jogador por semana e do treinador a cada duas semanas, em conversas distendidas, sobre futebol propriamente dito, devia ser objeto de uma cláusula de contrato entre a Liga – os clubes, portanto... – e o detentor dos direitos de TV. Além disso, os jornais e os meios exclusivamente digitais, escritos ou filmados, não podem continuar a ser ostracizados, como são neste momento – porque o público está muito aí e já não tanto apenas na televisão.
Em vez disso, o que temos hoje são conferências de imprensa pós-jogo cada vez mais telegráficas, em que praticamente só as TVs podem perguntar e em que a maior preocupação dos assessores de imprensa é impedir que se façam perguntas complexas, de modo a chegarem o mais depressa possível ao “Tá!?” com que se encerra a coisa. Para a generalidade dos grandes clubes, aquilo é uma obrigação e não uma oportunidade. Na última vez que tive responsabilidades editoriais sobre um meio que ia além de mim próprio – o Bancada, desde que o fiz nascer, em 2017, até eu ter cedido na luta contra esta indústria da suspeição, no final de 2018 – decidi que, face à exiguidade de meios de que dispúnhamos, não iríamos a conferências de imprensa, que são dominadas pela ditadura do direto e do soundbyte. Foi uma decisão difícil de tomar, porque cresci como jornalista no Expresso, a ir aos jogos e a conferências de imprensa ao fim-de-semana, sem necessidade nenhuma de o fazer, porque só tinha edição no outro sábado e nada do que dali saísse seria aproveitável. Mas ia porque podia fazer perguntas e entender melhor o jogo, os jogadores e os treinadores. Desse tempo, recordo grandes diálogos sobre futebol, em conferência de imprensa, com Toni, Bobby Robson, Paulo Autuori, Marinho Peres, Tomislav Ivic, Carlos Queiroz, Quinito, Jorge Jesus... Muitas vezes já com os colegas da rádio a franzirem o sobrolho, porque lhes estava a estragar o direto.
Esses tempos não voltam, eu sei. Nem é isso que pretendo. O Mundo evoluiu e cabe-nos a todos perceber como podemos viver nele. Aos clubes caberia entenderem que faziam muito mais pela criação de valor em torno do produto nessa altura do que fazem hoje. E portanto não devem estar muito espantados.
PS – Este é o segundo de uma série de três artigos dedicados à crise do futebol em Portugal. Na próxima semana voltarei ao tema com uma série de outras medidas não só necessárias como urgentes.