O fim de Roger Schmidt
“O início é o fim e o fim é o início”. O mote da série “Dark”, que fazia os protagonistas voltar no tempo até entrarem num complexo emaranhado de relações, causas e efeitos explica o fim de Schmidt.
Palavras: 1454. Tempo de leitura: 8 minutos (áudio no meu Telegram).
Roger Schmidt foi mesmo despedido do Benfica. Este é o momento em que muitos de vós se lembrarão da renovação de contrato com o treinador alemão, em finais de Março de 2023 (e na altura já escrevi sobre o tema, primeiro aqui e depois aqui), para lamentar o que o Benfica ainda terá de pagar a um treinador cujo vínculo original até teria acabado no final da última época. Mantenho que a renovação não foi errada. O que foi errado, sim, foi muito do que se seguiu. E aqui não falo exclusivamente da condução técnica e tática do treinador, mas também da navegação à vista da SAD. Roger Schmidt tem culpas no processo, porque se recusou sempre a fazer evoluir a matriz do futebol da sua equipa, que joga hoje exatamente como jogava em Agosto de 2022, quando ele chegou – mas com outros jogadores. Acontece que a administração também é culpada, devido ao rumo ziguezagueante que deu à gestão, não só do processo Schmidt – despedido à quarta jornada – como do próprio plantel, onde vale a famosa máxima de Pimenta Machado e, no que toca à relevância de jogadores, “o que hoje é verdade, amanhã é mentira”.
Mas vamos por partes e centremo-nos primeiro em Schmidt, um treinador que acaba por sair do Benfica como um fracassado que não é, da mesma forma que por alturas da renovação foi visto por muitos como vencedor eterno ou a pedra filosofal para as vitórias do futebol contra-pressionante que também não era. Schmidt tem uma ideia de futebol e não a muda desde os tempos do Leverkusen. Joga sempre igual – e aqui não falo do 4x2x3x1, mas da saída a quatro, ora com três mais um, se baixa um médio, ora com dois mais dois, dos dois médios como eixo de estabilidade em torno do qual roda toda a gente, dos laterais projetados como única fonte de largura, dos três atacantes sempre muito por dentro nas costas do ponta-de-lança, de toda a equipa concentrada no quadrante onde tem a bola, para depois se sair melhor do momento da resposta à perda... É a cartilha básica do Gegenpressing, como foi criada por Ralf Rangnick e aplicada, por exemplo, à seleção austríaca no último Europeu. Nada mudou desde o primeiro dia? Taticamente, não. Viram-se, na época passada, lampejos de largura dados por Di María, com o lateral a vir mais dentro, mas foi só e foi pouco. Houve, porém, dois fatores que mudaram bastante. Primeiro, os jogadores. Depois, a compreensão que os adversários iam conseguindo acumular do modelo-Schmidt.
Até me parece que o plantel desta época se adequava mais à ideia do treinador do que o da época passada, por exemplo, mas uma coisa é querer fazer isto com Grimaldo, Enzo Fernández e Gonçalo Ramos e outra, bem diferente, é querer pôr a coisa em funcionamento com Beste ou Carreras, Barreiro e Pavlidis – e já nem falo de Jurásek, Kökçü e Arthur Cabral, que foram as soluções engendradas de início em 2023/24. Schmidt começou a ver o seu modelo definhar quando perdeu o poder criativo desde trás que lhe dava Grimaldo, quando ficou sem a capacidade de juntar os esticões com bola e a pressão subida de Enzo e quando foi privado das diagonais curtas de ataque à área e da presença sempre ameaçadora ao primeiro poste de Gonçalo Ramos. Apesar da quebra na segunda metade da época, o que ficou ainda deu para ser campeão em 2023 – mas dois destes três jogadores ainda cá estavam. Já não chegou para repetir a proeza em 2023/24, onde o Sporting foi indiscutivelmente mais forte. E aqui já haverá algumas culpas repartidas entre uma administração que reforçou a equipa de acordo com uma cartilha que não era a do técnico – que ou não foi tido nem achado na matéria ou não teve a competência exigível naquilo que deliberou – e um treinador que, confrontado com essa realidade, não mudou a ideia. E devia ter mudado, não só porque já não tinha os intérpretes mais adequados a ela, como ainda porque os adversários já a conheciam de cor e salteada e, desde que com capacidade para se juntarem atrás e, sobretudo, para rodarem jogo em direção ao quadrante deixado desguarnecido, facilmente superavam o pressing benfiquista e invadiam o meio-campo dos encarnados em situações de igualdade ou até superioridade numérica. Em última análise terá sido este autismo a custar agora o lugar a Schmidt.
Mas, lá está, as culpas não morrem ali. Perguntaram a Rui Costa, na conferência de imprensa em que ele anunciou as negociações para a rescisão de contrato com o treinador, o que tinha mudado desde Maio, quando decidira continuar com ele em vez de atacar o início de época já com o homem que agora vai escolher. A resposta do presidente do Benfica não convenceu, porque falou de crença, de confiança e de estabilidade, mas não chegou ao mais importante – a proatividade. “Acreditávamos que era mais fácil repetir o primeiro ano de Roger Schmidt do que o segundo”, disse Rui Costa. Mas é aqui que se aplica o ditado popular que manda fazer pela vida: “fia-te na virgem e não corras...” E vale a pena perguntar se, além de acreditar que podia repetir-se o início, houve da administração, da direção desportiva, de alguém que pudesse funcionar como conselheiro do técnico, uma tentativa séria e real de lhe fazer entender que era preciso mudar para atingir os fins desejados. Não é competência da administração? Não vejo a coisa assim. O sucesso numa equipa depende da criação desta corrente bilateral, de uma complexa teia de relações em que todos se influenciam. Um pouco como na série alemã “Dark”, que tal como a presença de Schmidt no Benfica teve uma primeira temporada absolutamente notável e sequelas que não mereciam sequer o tempo que gastei a vê-las. “Der Anfang ist das Ende und das Ende ist der Anfang”, que é como quem diz “O início é o fim e o fim é o início”. Pelo meio, não há ações insignificantes. Tudo conta.
Conta, por exemplo, a gestão do plantel feita esta época. Uma coisa foi o plantel no dia de início dos trabalhos, outra é o que lá está agora – porque, aqui, o fim não é o início. Já não está João Neves e, a julgar pelo que se viu a seguir, fica-se sem entender se o médio foi vendido por necessidade ou por imposição do próprio jogador e da sua equipa de agentes. Já não está Neres. E, aqui, a ideia com que se fica é a de que a saída se deveu mesmo à vontade do jogador, nascida da soma de uma decisão da administração – renovar com Di María – ao histórico do treinador – que nunca substituía o argentino e já entendera que, na sua matriz, não podia compatibilizar os dois. Não vai estar Marcos Leonardo, que há semanas era visto como o futuro da equipa. Não se sabe se vai estar João Mário, que horas antes de ser divulgado que caíra da convocatória, por estar para sair do plantel, foi descrito pelo treinador como um jogador-chave. Quem está é Prestianni, que antes da notável exibição contra o Feyenoord, na pré-época, se supunha que ia sair emprestado. E estão vários jogadores emprestados, o que na prática é o sinal mais evidente de navegação à vista por parte de uma administração que tem vindo a empurrar os problemas para a frente com a barriga – como fez com Schmidt em Maio. Se olharmos para a avaliação feita pelo Transfermarkt do plantel do Benfica e lhe subtrairmos o valor de Marcos Leonardo chegamos a 319 milhões de euros, dos quais 28,5 milhões correspondem a jogadores que não pertencem ao clube. São menos 100 milhões do que valia o plantel de 2023/24 – e, ainda que aí estejam contabilizados jogadores que saíram e os que vieram para os lugares deles, como Musa e Marcos Leonardo ou Jurásek e Carreras, por exemplo, a diferença é demasiado grande para ser ignorada.
Pode, assim, o Benfica ser campeão, caso Rui Costa acerte na escolha do treinador que virá substituir Schmidt? Pode, com certeza. Como bem disse Vítor Bruno, o treinador do FC Porto, depois de perder o clássico com o Sporting, “à quarta jornada, não há campeões nem equipas impossibilitadas de o ser”. Mas que as decisões tomadas até aqui estão a afastar o Benfica desse objetivo, isso parece inegável.
Schmidt demonstrou alguma deficiência na gestão do jogo, onde é demasiado passivo e na gestão do grupo de trabalho. Foi campeão, com mérito, mas quando teve os jogadores certos para o seu sistema, quando chegou. Depois das duas uma, ou Rui Costa não consultou Schmidt nas contratações, o que demonstra a passividade do treinador também extra-campo e a incompetência atroz da direção do clube, ou Schmidt não pode treinar num campeonato habituado a vender para sobreviver, pois não sabe formar um plantel para o seu sistema de jogo, além da incapacidade de adaptação e de coragem, não seria mais adequado ter Di Maria no banco, face ao seus sistema de jogo? Além de que, qualquer treinador perde o balneário quando Schmidt faz o triste espetáculo que fez no Bessa ao crucificar de forma injusta e pública, o seu guarda-redes.
Schmidt teve méritos no títulos e culpas nos maus resultados e no seu despedimento, mas não é o único culpado.
E neste mercado o Benfica vendeu o Neres e agora está em negociações por um extremo. Muito provavelmente jogadores diferentes mas não deixam de ser os dois extremos.