O chico-esperto e o tiranete
O país de brandos costumes que somos é recordista europeu de mau comportamento e de cartões mostrados nos relvados. As razões são culturais, sim, mas é importante que sejam combatidas.
O choque da generalidade da sociedade portuguesa face ao duplo homicídio verificado no Centro Ismaili de Lisboa não engana: somos aquilo que dizemos que somos, o país de brandos costumes que nos habituámos a apreciar. Mas esta tranquilidade não se estende a todas as áreas. No futebol, então, somos uns corrécios, uns indisciplinados violentos nos quais não se consegue ter mão. É a conclusão que se tira do estudo desta semana do Observatório do Futebol, um instituto suíço que foi contabilizar a média de cartões por jogo de 76 ligas de todo o Mundo e concluiu que os dois campeonatos profissionais portugueses – a I e a II Liga – são os mais afetados pelo flagelo dos cartões em toda a Europa. A tabela é liderada pela I Divisão da Bolívia, com 7,01 cartões por desafio, seguem-se os campeonatos do Uruguai, da Venezuela e do Equador, para logo depois, em quinto lugar, aparecer a II Liga portuguesa. Os 6,04 cartões mostrados por jogo no segundo escalão nacional superam os 5,90 que valem ao primeiro a oitava posição – atrás de Costa Rica e Peru – e vêm deitar por terra a teoria de que o excesso se deverá ao efeito espetacular proporcionado pelas transmissões e pelos debates televisivos montados em torno do frame. Explico melhor. Ontem, um dia inteiro depois do duplo homicídio das Laranjeiras, ainda havia canais de televisão a fazer diretos do local, alternando-os com as ligações aos tumultos reais de Paris, como se houvesse alguma coisa por e para mostrar naquele pacato local onde mais de 24 horas antes um cidadão tinha sido vítima de um surto psicótico e assassinara outras duas cidadãs. Não havia. E não só não havia como está estudado que estas coisas se auto-alimentam em círculo vicioso, que o excesso despropositado de atenção pode atrair gente sequiosa de palco – o que nem terá sido o caso – e que quando isso acontece há razão para mais atenção. No futebol, aparentemente, também não é assim. Porque se os jogadores fossem mal comportados para fazerem uma declaração contra alguma coisa, sê-lo-iam mais na I Liga, onde ganhariam protagonismo mediático. Se o evidente descontrolo disciplinar dos árbitros nacionais estivesse de algum modo relacionado com a atenção dos media, como defesa ou busca de protagonismo, ele seria maior na I do que na II Liga. Porque razão temos então as médias de cartões mais elevadas da Europa, quando somos um oásis de correção e pacatez em todas as áreas da sociedade? Porque razão tem a nossa Liga 5,90 cartões por jogo, quando as Ligas com as quais gostamos de nos comparar estão muito abaixo desse valor? Na Liga neerlandesa, que nos vai tirar o sexto lugar do ranking da UEFA, a média é de 3,09 cartões por jogo. São menos 2,81 cartões por jogo, menos 25 cartões por jornada, menos 860 por campeonato. As Big Five, que são o nosso modelo em tanta coisa, navegam entre os 3,49 da Premier League e os 5,36 da Liga espanhola. Creio que as razões são simples de explicar: temos árbitros descontrolados e incapazes de controlar jogos pela autoridade que lhes advém naturalmente da sua posição em campo, sempre predispostos a passar de agentes da autoridade a agentes autoritários – o que não é, de todo, a mesma coisa – e temos jogadores fiteiros e enganadores, que tentam sempre aproveitar o mínimo toque para simular que lhes arrancaram um olho, numa falta de respeito evidente por toda a gente, desde os adversários aos espectadores. E estas figuras, o chico-esperto que noutras áreas se gaba, por exemplo, de não pagar impostos e o tiranete nascido de anos e anos de colaboracionismo e delação ao serviço da ditadura, já são tipicamente portuguesas e rapidamente absorvidas até pelos estrangeiros que para cá vêm jogar.
A renovação de Schmidt. Enchem-se os jornais com notícias segundo as quais o Benfica quer já renovar o contrato de Roger Schmidt. Acho bem que o faça – se o treinador alemão estiver nessa disposição. Schmidt assinou por dois anos, tem vínculo válido até 2024, entende-se que não se lhe tenha dado mais tempo logo a abrir, porque ele podia fracassar e transformar-se num problema, mas deu certo e, portanto, há que fazer o que se pode para o guardar. Ainda assim, convém desfazer desde já dois mitos. Um é o da infalibilidade de Schmidt. Schmidt não revolucionou o futebol, não tem uma receita única e não vai ganhar para sempre. Já perdeu noutras latitudes e, sendo verdade que está a fazer um trabalho extraordinário no Benfica, acabará por chegar o dia em que perderá aqui também, desde que para tal lhe deem tempo. Se há adeptos que acham que renovando com o treinador até 2026 garantem desde já o tetra, desenganem-se. Os méritos do alemão foram o de ter compreendido rapidamente o futebol português, ter uma conceção muito clara do futebol que quer, ter adequado bem o plantel e o onze a essa conceção e ter conseguido uma relação ótima com os jogadores e, igualmente importante, com os adeptos. Não é pouco. Pelo contrário: é muito, é imenso. Schmidt ainda não ganhou nada, mas vai ganhar. Como também há-de inevitavelmente perder. Ainda assim, se as coisas lhe correrem bem e se ficar por cá tempo suficiente, pode vir a ter no Benfica um impacto que nos 40 anos que levo a ver futebol como deve ser só dois treinadores tiveram: Sven-Goran Eriksson e Jorge Jesus. E é aqui que entra o segundo mito: o de que um treinador só deve deixar um clube de topo em Portugal porque perde ou porque ganha tanto que vai para um colosso europeu. Jesus foi cuspido a ganhar, mas em boa parte porque pelo meio tinha perdido três campeonatos seguidos para o FC Porto e na SAD se achou que ele não justificava o investimento permanente que a sua liderança exigia. Eriksson saiu para a Serie A italiana porque a dada altura se tornou demasiado grande para um futebol português que nos anos 80 era comparativamente menor em relação ao que é hoje. Nunca falei com Schmidt e não sei o que o motiva, se quer um dia voltar a trabalhar na Alemanha, se não gosta de ficar muito tempo no mesmo local, mas se a ideia por trás da renovação é a de garantir vitórias em permanência, não vale a pena. E se a ideia é impedir que ele vá para um colosso, também não vale a pena. Vale a pena renovar com ele, sim, porque está a trabalhar muito bem. Creio que Rui Costa tem isto claro. Já os adeptos...
Ainda o mercado do Sporting. Dizem também os jornais – e isto de não haver futebol deixa-me a agenda vazia... – que Rúben Amorim já definiu o que quer de presente no mercado de Verão: um ala direito, um número oito e um ponta-de-lança. Não é surpreendente. Porro saiu e Bellerín não lhe encheu o espaço. Matheus Nunes saiu e tanto Alexandropoulos como agora Tanlongo foram mais oportunidades do que soluções. Paulinho começa a ser curto para fazer a posição de uma determinada forma, o que tem obrigado a equipa a adaptar-se e a servir-se mais de Edwards do que dele como ponto de apoio frontal nas saídas. Perante esta realidade, há quem reclame que o treinador foi teimoso e que já devia ter permitido as entradas há mais tempo – e mais reclamarão quando perceberem que o ponta-de-lança que vier não será feito no molde do “nove goleador” que pedem – e há quem reclame em sentido inverso, porque no grupo há Gonçalo Esteves, há Mateus Fernandes e há Chermiti e Rodrigo Ribeiro e se devia apostar mais neles. Mas o projeto de Rúben Amorim sempre me pareceu claríssimo e não se articula nem com uma ideia nem com a outra. O Sporting de Amorim faz-se de meia-dúzia de homens de plantel, daqueles que são pau para toda a obra, que tanto jogam como ficam no banco – são aqueles que são geralmente mais assobiados mas que são fundamentais para o treinador... – e depois quer ter em todas as posições um consagrado e um jovem aspirante. Ter mais de uma solução tapa o caminho aos aspirantes, mas a equipa não pode ser feita com base neles, pelo menos enquanto não se transformarem em consagrados, como aconteceu a Matheus Nunes, cuja subida de categoria levou, por exemplo, à não insistência para ficar com João Mário. Podem concordar ou discordar. Não o entenderem já me parece mais difícil de justificar.