Quantos Aursnes são muitos Aursnes?
A Turquia sofreu até à exaustão mas eliminou a Áustria, equipa à qual falta em talento o que sobra em disponibilidade e cultura tática. Caiu a equipa que parecia cheia de Aursnes. Quantos são demais?
Quando Artur Soares Dias apitou para o final do Áustria-Turquia, só três dos jogadores turcos ficaram em pé no campo. Nem todos terão caído de exaustão, que houve ali uma componente de festejo a ter em conta, mas era evidente o suplício físico que foi segurar a vantagem mínima que os dois golos do central Demiral tinham garantido contra a equipa predileta de muitos analistas e que a magistral defesa de Mert Günok segurara no último lance do jogo, como se o fantasma de Gordon Banks nele tivesse reincarnado e pela frente estivesse outra vez Pelé. Quem lá estava não era o Rei, era apenas Baumgartner, e o modo como mais uma vez a finalização foi frustrada – foram 21 remates da Áustria no jogo, para um xG total de 3.16, mas apenas um golo – comprova aquilo que já vos tinha dito. Coletivamente, a Áustria era uma das equipas mais bem trabalhadas deste Europeu – com concorrência da Suíça, da Espanha e da Alemanha, estas duas últimas um culto à simplicidade tática e estratégica. Mas depois, vistas as coisas de um ponto de vista individual, a qualidade dos intervenientes ao dispor de Rangnick não era a melhor. Quando o foco é a capacidade para não deixar jogar os adversários e tomar sempre as decisões mais simples e estatisticamente recomendáveis, perde-se o que torna o futebol ofensivo especial: a criatividade, sacrificada a um jogo mais computorizado. Qualquer jogador de que os austríacos disponham do meio-campo para a frente trabalha sempre muito e parece ter incorporado no cérebro um chip capaz de processar num microssegundo todas as jogadas semelhantes à que vão enfrentar na história do futebol e de lhe dar com rapidez imaculada a resposta à pergunta sacramental: “e agora, o que faço”? Antes de começar o Europeu escrevi que era como se a Áustria tivesse em campo “onze Aursnes”. Sucede que se um Aursnes é o sonho de qualquer treinador, se dois ou três ainda se encaixam com sucesso, onze serão uma overdose de utilitários que depois castiga o coletivo quando se lhe pede que em vez de tomar a decisão certa, aquela que a estatística recomenda, busque a surpresa, a decisão que, tendo mais hipóteses de falhar, se resulta, dinamita o jogo e pulveriza o adversário pela surpresa. Este é o tipo de jogador que não se fabrica, que não se trabalha – e que os austríacos não têm há muitos anos. A esta Áustria falta um criativo como Prohaska, a chave do sucesso da geração de 70 e 80, a que ainda tinha Krankl e Pezzey, por exemplo. A Turquia tem esses jogadores, nos ainda assim ontem mais apagados Güler e Yildiz ou até nas chegadas dos laterais Müldür e, sobretudo, Kadioglu, mas depois falta-lhe a capacidade de consolidar os lampejos de criatividade que eles dão ao coletivo. A chegada aos quartos-de-final parece, por isso, tudo a que esta equipa de Vincenzo Montella pode aspirar.
A metamorfose da Holanda. As perdas, por lesão, de Koopmeiners, De Jong e até De Ron não auguravam nada de bom para uma Holanda em que Ronald Koeman parece estar sempre mais a sobreviver do que a fazer planos. Mas a equipa laranja cresceu neste Europeu. Reijnders já lhe dá consistência e o selecionador parece ter encontrado o equilíbrio certo entre unidades atacantes e defensivas. A Holanda começou com Schouten, Veerman e Reijnders ao meio, mas só com a introdução do grande e desajeitado Weghorst na frente conseguiu ganhar à Polónia. Deu um passo em frente contra a França, introduzindo mais uma unidade ofensiva (Frimpong, à direita) em sacrifício de Veerman, com desvio de Simons, mas esse acabou por ser o jogo mais aborrecido de todo o Europeu, por opor duas equipas fundamentalmente receosas uma da outra. Veio a Áustria e, mesmo utilizando o mais atacante Malen em vez de Frimpong – a direita tem sido sempre a agulha por onde Koeman manobra a máquina –, a Holanda entrou com quatro centrais atrás: Geertruida, de Vrij, Van Dijk e Aké. Foi o jogo em que mais penou, encaixando ali três dos seus quatro golos sofridos. Visto isso, nos oitavos-de-final, a equipa laranja cresceu para a frente: só dois médios, com Reijnders e Schouten atrás de um 10 como Simons, e um lateral atacante na direita, que foi Dumfries. A Roménia ainda entrou bem, a pressionar de forma coletiva e a ter mais iniciativa até ao momento em que Gakpo inventou o golo do 1-0. Daí para a frente, só deu mesmo Holanda. Ao contrário da Inglaterra, que vai enfrentar nos quartos-de-final, a equipa de Koeman tem mudado sempre em andamento, mas isso não a deixa menos segura do que quer fazer.
De Bruyne e os estúpidos. Espalhou-se um bocado a ideia de que os jogadores que crescem sob a égide tutelar de Guardiola estão como que numa universidade de pensamento livre, já habituados a discutir as coisas e a pôr tudo em causa. Mas não há nada na cultura idolatra do futebol de hoje que os prepare para a frustração da derrota. Tenho por Kevin de Bruyne uma enorme admiração enquanto futebolista, acho que passou anos a mais injustamente relegado para um plano inferior na seleção belga, atrás de Hazard, por exemplo, mas a forma como ele reagiu a uma pergunta que era perfeitamente legítima (e mesmo que não fosse...), acerca do fracasso reiterado da “geração dourada” da Bélgica diz tudo acerca do que está mal na relação que os jogadores de topo estabeleceram com o Mundo que os rodeia. Insatisfeito por ter sido confrontado com um facto – a geração dele voltou a falhar numa grande competição – saiu sem responder, a abanar a cabeça em sinal de reprovação e a balbuciar um “estúpido!” que ainda foi captado pelos microfones. Já abordei o tema aqui em Março, quando escrevi sobre a “praga dos chega’misso”, aqueles auxiliares que formam a bolha de bajulação sem a qual nenhum craque desta geração passa e que está a inabilitá-los para coisas tão simples como a liderança, a auto-crítica ou a tomada de responsabilidade. De tão pouco habituados a ter de enfrentar perguntas que vão além do elogio mascarado, os futebolistas de hoje já não são sequer capazes de as ouvir. São cada vez melhores jogadores e cada vez piores pessoas.
Entrelinhas
El éxito de la España más plural, artigo de Juan I. Irigoyen, no El País, sobre os 125 jogadores jovens que, como Lamine Yamal e Nico Williams, estavam em condições de optar por duas seleções e foram acompanhados pela Federação Espanhola.
L’homme qui ne voulait pas aller dans le but, artigo de Romain Lafont, no L’Équipe, a contar a história de Diogo Costa, o herói de Portugal nos oitavos-de-final.
YouTube star aged 10, risk taker, assist maker, é um perfil de Xavi Simons, o criativo do meio-campo da holanda, assinado por Jacob Whitehead, no The Athletic.
Turkey and the positivity of pressure, reportagem de James Horncastle, no The Athletic, sobre a diáspora turca e a pressão que ela coloca em cima da equipa.
No te preguntes por quién pitan los árbitros, crónica de Jorge Bustosm no El Mundo, a partir das lágrimas de Cristiano Ronaldo.
Does it matter if England play badly but win Euros?, inquérito aos enviados do The Telegraph ao Euro 2024, a recuperar o mote que esteve por trás da campanha de Portugal em 2016, o “não importa, não importa...”
What Southgate must sort out against Swiss, análise de Jacob Steinberg no The Gurdian ao que a seleção inglesa precisa de resolver tática e estrategicamente antes de defrontar a Suíça.
England have learnt to keep the ball, now they need to use it, análise de Paul Joyce e Hamzah Khalique-Loonat, no The Times, enquadrando os números ingleses nos dos outros sete quarto-finalistas.
Francia tiene la pelota más que nunca y juega peor que siempre, análise de Ladislao J. Moñino, no El País, em torno da fraqueza criativa da seleção francesa.
Fortissima Francia, non segna su azione ma resta favorita, análise de Fabio Capello à equipa de França, na Gazzetta dello Sport.
Il avance masqué, ponto de situação à condição mental, atlética e tática de Mbappé antes do jogo com Portugal, feito por Vincent Duluc, Damien Degorre e Hugo Delom, no L’Équipe.
E agora que Dinamarca e a Áustria ficaram pelo caminho, muito agradáveis prestações,fazemos pause até á final, sim a final irei ver, aliás vou ter oportunidade de ver a final antecipada Espanha Alemanha.
Em relação ao clube privado, vozes começam a levantar-se, eu tinha frisado para o bem e para o mal