O que vale o novo ciclo
A primeira lista de Martínez para o “novo ciclo”, o que chegará ao Mundial de 2026, tem seis jogadores novos e sete ausentes do Europeu. E diz-nos o passado recente que é para levar a sério.
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Roberto Martínez pode até estar a ser sincero quando diz que “depois dos 30 anos, todos os jogadores têm de viver muito o dia-a-dia” e, quem sabe, talvez até esteja a pensar numa coisa bem diferente quando justifica as alterações que fez na convocatória divulgada há pouco, para os jogos com a Croácia e a Escócia, da Liga das Nações, com a entrada em vigor de um “novo ciclo”, mas a julgar por aquilo que têm sido as suas práticas como selecionador, tanto na Bélgica como no ano e meio que leva à frente da equipa de Portugal, há uma boa base de sustentação para se julgar que o grupo que estará no Mundial de 2026 será em grande medida este que ele hoje revelou e incluirá Cristiano Ronaldo. Martínez é um renomado conservador (já o era quando liderava a Bélgica) e basta verificar que entre a primeira lista que fez para Portugal, em Março de 2023, e a que levou à fase final do Europeu, em Junho de 2024, só mudou quatro nomes. Dos quatro que caíram na última hora, dois estavam lesionados e um terceiro abdicara entretanto da equipa nacional.
Só Martínez e o próprio jogador saberão o que fez Diogo Leite, o jogador chamado em 2023 e excluído em 2024, para ser o único a ficar fora das contas finais sem razões, digamos assim, alheias à vontade do selecionador. Possivelmente terá até sido decisiva a mudança de sistema tático, que levou o treinador a abdicar dos três defesas-centrais, porque se para as outras três ausências se encontram na lista final ocupantes de posições mais ou menos aparentadas, a queda do defesa canhoto do Union Berlim foi compensada com a entrada de mais um extremo. É que, além de Leite, os únicos chamados para esses primeiros jogos de Martínez, contra o Liechtenstein e o Luxemburgo, que depois não estiveram na fase final do Europeu foram Raphael Guerreiro, Otávio e João Mário. Os dois primeiros estavam lesionados aquando da lista final, o terceiro renunciara entretanto à seleção. E os quatro jogadores convocados para a fase final sem terem marcado presença na lista inicial foram Nélson Semedo, João Neves, Francisco Conceição e Pedro Neto. O que, mesmo tendo em conta que a lista de hoje é muito peculiar, por ser feita em início de época, num momento em que há gente que ainda não jogou, por estar a mudar de clube, nos dá também uma pista acerca da forma mais fácil de entrar nas contas durante o ciclo.
Até 2026, haverá espaço para revelações, como foram de 2023 para cá João Neves e Francisco Conceição. À data da primeira lista de Martínez, Neves já tinha feito onze jogos pelo Benfica, mas nenhum como titular. Impôs-se a seguir e chegou à seleção. Conceição estava exilado no Ajax, onde alternava entre a equipa principal e a secundária, donde já se vê que nem sempre era primeira escolha também. Quando se impôs como abre-latas do FC Porto, também chegou à seleção. Já Pedro Neto vinha de uma lesão grave e tinha feito apenas dois meios jogos pelo Wolverhampton desde Outubro, pelo que, começando a jogar com regularidade, também ele chegou à lista de Martínez. E resta Nélson Semedo, chamado para a fase final provavelmente porque nela não pôde marcar presença Guerreiro, que se magoou no final da temporada do Bayern Munique. Os outros 22 foram rigorosamente os mesmos, o que me leva a concluir que esta lista, provavelmente, só mudará se aparecer uma super-revelação ou se, entre aqueles que já fizeram parte do ciclo anterior e hoje foram excluídos por razões alheias à vontade do selecionador, haja quem entretanto volte ao seu melhor nível. E aqui falo, por exemplo, dos lesionados Gonçalo Ramos, Otávio e Guerreiro, mas também dos elementos que estão neste momento a chegar a novos clubes, como Rui Patrício (Atalanta) e João Cancelo (Al Hilal) e dos que ainda nem sequer encontraram colocação, por terem sido “dispensados”, como Danilo (Paris Saint Germain) e Matheus Nunes (Manchester City). Os outros que faltam são Pepe, que já não volta, porque pôs ponto final na carreira, e os enigmas Ricardo Horta e Toti Gomes. Ao contrário do que acontecera antes do Europeu, o primeiro, desta vez, nem teve direito a uma menção especial – falta saber se houve telefonema a justificar a ausência. O segundo até é neste momento titular absoluto dos Wolves, mas na verdade nunca chegou a ser visto como um indiscutível quando era chamado.
É claro que uma vez chegados àquele patamar, jogadores consagrados no plano clubístico, como Trincão ou Pedro Gonçalves, serão mais difíceis de erradicar do grupo do que jovens como a surpresa da lista, que foi Giovanny Quenda, ou jogadores mais experientes que se vê que estão a ocupar uma vaga que na verdade não é mesmo deles, como o terceiro guarda-redes, Rui Silva. Mas para todos vai ser fundamental aquilo que mostrarem no trabalho diário. A estabilidade que Martínez gosta de aplicar aos seus ciclos bi-anuais permite perceber que todos os jogadores que hoje deram entrada – ou regressaram – ao edifício da seleção terão a ocasião de nele se manterem até ao próximo Mundial. E tanto como aquilo que venham a mostrar em campo – isto se chegarem a jogar, o que pode até nem acontecer – importará o que fizerem no contacto com o grupo e no treino. Essa já era a forma de pensar de Fernando Santos e é também a de Martínez, que explicou assim a convocatória de Renato Veiga, por exemplo, por oposição a Eduardo Quaresma ou Tomás Araújo – e na pergunta até lhe falaram de Zé Pedro também, provavelmente para manter o equilíbrio face aos três grandes, que, já com 27 anos, o central portista nunca foi jogador de seleção e provavelmente já não tem idade para crescer a ponto de em tal se tornar. Veiga jogou apenas 17 minutos saído do banco pelo Chelsea na Premier League e fez dois jogos completos na Liga Conferência, em que o clube londrino usou algumas segundas escolhas e acabou com um desempenho pior do que o SC Braga frente ao Servette, mas ainda assim mereceu a chamada à frente dos jogadores que têm sido titulares, com boas exibições, no Sporting e no Benfica. Razão? Todos eles estiveram já a trabalhar com o grupo principal em Março, quando estavam inseridos na seleção de sub21, e Martínez terá feito a escolha mais por aí do que pelo que viu nos jogos desta época.
Não creio que a reflexão feita por Martínez acerca do que Portugal (não) mostrou no Europeu o leve a modificar o processo de escolha, até porque o que ele disse nas duas recentes entrevistas diverge bastante daquilo que foi a perceção externa ao grupo. É por isso muito provável que mantenha a forma de funcionar que já era a dele na Bélgica e que foi a dele no ciclo do último Europeu. O que isto quer dizer é que quem foi hoje chamado tem todas as razões para achar que reúne boas perspetivas de vir a estar no Mundial de 2026. Incluindo Cristiano Ronaldo.