Isto não é sobre arbitragens
Sempre achei que tudo o que retirasse peso aos por vezes acéfalos e parciais fóruns acerca de arbitragem seria bom. Os ingleses vão agir e, não tarda, teremos aí as conversas entre árbitro e VAR.

A primeira coisa que tenho para vos dizer acerca do tema quente do fim-de-semana é que as análises dos lances de arbitragem faço-as nas crónicas de jogo – e têm link para elas no final do texto – e na TV, sempre que mas pedirem ou, como é evidente, se estiver a comentar jogos em direto. Este não é, portanto, um artigo sobre penaltis, cartões, foras-de-jogo ou minutos de desconto, os temas que tomaram conta do espaço mediático nesta jornada da Liga. Este é um artigo – mais um – acerca das formas de fazer com que os penaltis, os cartões, os foras-de-jogo ou os tempos de desconto deixem de tomar conta do espaço mediático sempre que há duas ou três decisões-limite. E acerca da lição que a Premier League vai voltar a dar-nos a todos.
Aqui há dias, escrevi acerca da razão pela qual os ingleses não querem a SuperLiga e somos nós, todos os outros, que precisamos dela – é porque eles já têm uma SuperLiga com o poder somado de todas as outras. Chama-se Premier League. O artigo – que pode ler aqui, se é que lhe escapou – motivou as mais diversas reações de leitores. Na maior parte dos casos de não-leitores, aliás. Houve os que me acusaram de estar a criar uma cortina de fumo para não ter de falar “do que nos devia preocupar a todos”, que é o favorecimento ao (aqui, inserir clube do qual não se é adepto). Houve os que me criticaram por estar indevidamente preocupado com o dinheiro que a Premier League estava a gastar, porque se o gastam é porque o têm, quando na verdade o meu problema é que as outras Ligas não tenham esse dinheiro para gastarem também e a desigualdade que isso gera. Houve os que disseram que a Premier League só é tão forte por causa do dinheiro sujo que por lá circula, ignorando que feitas as contas aquilo dá lucro aos seus investidores – ao contrário do futebol português, que não terá tanto dinheiro sujo, mas continua a ter de compensar a perda de dinheiro com a transferência de talentos. E no fim voltaram os primeiros, os da cortina de fumo, a dizer que a Premier League é um sucesso gigantesco, porque lá os árbitros não estão sempre a errar e “há verdade desportiva”.
Pois bem, deixem-me dar-vos uma novidade, se não fazem parte do lote de adeptos que vê mesmo os jogos da Premier League e se limita a elogiar a coisa para parecer mais “hip”: os árbitros da Premier League erram tanto como os nossos. Aliás, acho até que erram mais do que os nossos. Só neste fim-de-semana, houve consenso relativamente a dois erros com peso nos resultados, a anulação de um golo que daria o empate ao West Ham frente ao Chelsea – que já tinha sido prejudicado no dérbi com o Tottenham, por exemplo – e de outro que devia ter dado a vitória ao Newcastle United contra o Crystal Palace. A grande diferença entre o que se passa na Premier League e o que sucede, por exemplo, em Portugal, é que por lá já se concluiu uma coisa que digo de forma repetida: a arbitragem não é uma ciência exata, nem o VAR impede que haja uma série de decisões que podem pender para um lado ou para o outro consoante o estado de espírito do momento e a melhor maneira de levar as pessoas a acreditar que estas decisões “borderline” não são frequentemente inclinadas para o lado dos grandes ou influenciadas por uma qualquer lei de compensação que leve em conta decisões anteriores é permitir-lhes que se imiscuam no processo de decisão. E não tenho dúvidas de que vão ser tomadas medidas nesse sentido.
Desde que começou a haver VAR que é para mim uma evidência que os áudios das conversas entre árbitros devem não só ser públicos como incluídos nos diretos das transmissões e estar acessíveis a quem vê o jogo no estádio. Como escreve o ex-árbitro internacional Keith Hackett no Daily Telegraph de hoje, num artigo em que sugere algumas medidas para melhorar todo o panorama da arbitragem, “o rugby fá-lo, o críquete fá-lo e o resultado é que os adeptos não questionam o processo de tomada de decisão, mesmo que não estejam de acordo com ela”. Sempre que propus algo de semelhante, a resposta que obtive foi que “o público do futebol não está preparado para isso”. Discordo em absoluto. Qualquer movimento que tire a discussão da arbitragem dos fóruns acéfalos em que ela é feita neste momento, que reduza a importância destes fóruns – o que inevitavelmente sucederá se houver uma versão oficial dos factos – é um bom movimento. O que não nos serve é o absentismo em que vivemos, graças ao qual não sabemos ainda o que é que, na opinião dos árbitros, do VAR e do Conselho de Arbitragem, foi diferente nos lances de Diego Rosa e Bamba, por exemplo. Está tudo calado, deixando o palco aos especialistas – alguns deles com agenda, por vezes clubística, às vezes apenas de defesa da classe ou até de afronta pura e simples à modernidade – e, sobretudo, aos comentadores engajados que falam do tema durante horas a fio nas TVs a defender as suas cores e, com isso, a influenciar as discussões dos adeptos.
Ao silêncio oficial que impera em Portugal, a Premier League responde com abertura total. A PGMOL, a comissão de árbitros profissionais, já admitiu que as decisões tomadas nos jogos em causa foram erradas e prometeu, em declaração escrita, “colaborar com a Premier League na revisão dos casos”. Nem precisava de o fazer, porque todas as decisões são já revistas por um painel formado por um representante da Liga, um da dita comissão e três ex-jogadores, sendo as conclusões enviadas para todos os clubes. Em Portugal isso também se fará, nestes ou noutros moldes, e até já houve casos em que se soube o que pensava o Conselho de Arbitragem de alguns lances. Falta a continuidade e a regularidade, para que não haja margem para dúvidas acerca das razões pelas quais se fala numas situações e não se fala noutras.
O comboio que levará em breve à divulgação dos áudios das conversas entre árbitro e VAR já está em movimento. E esse comboio será imparável. Mas tenho pena que, tendo Portugal sido inovador no VAR, não estejamos na carruagem da frente neste aspeto. Porque ele é fundamental, até para educar os adeptos acerca de uma coisa que muitos ainda não se aperceberam: é que a arbitragem não é uma ciência exata.