O jardim da Premier League
A dois dias do fecho do mercado, a Premier League superou, pela primeira vez, os dois mil milhões de euros em transferências. Os ingleses já gastam tanto como as outras Big Five juntas. Preocupante.

O mercado de transferências fecha amanhã em todas as grandes Ligas e os negócios que já temos feitos confirmam duas tendências que já têm uma década. A primeira é que cada vez mais é a Premier League que manda nisto tudo e que molda a realidade. A segunda é que a austeridade da pandemia acabou – se é que alguma vez chegou a existir. Quando ainda há vários negócios de topo por fazer, as 15 Ligas mundiais que mais investiram nesta janela de transferências totalizam mais de 5,1 mil milhões de euros em gastos, um crescimento de 32 por cento face aos valores do ano passado. E à cabeça de todas está a cada vez mais distante Premier League, líder de mercado pelo 11º verão consecutivo, que bateu pela primeira vez a fasquia dos dois mil milhões de euros em gastos. Mérito de um modelo de negócio próspero? Sim. Preocupante para a realidade global? Sem dúvida.
De acordo com o portal especializado em mercado Transfermark, em tabela que pode ver aqui, os 20 clubes da Premier League já investiram neste mercado mais de dois mil milhões de euros. São 2,02 milhões, para ser mais preciso – e, além de outros negócios que podem estar por fazer, o Liverpool FC ainda procura um médio e o Manchester United anda atrás de um guarda-redes. É a primeira vez que uma Liga ultrapassa os dois mil milhões de euros numa só janela de mercado – sendo que os ingleses também já tinham sido os primeiros a superar os mil milhões, em 2014. Esta vertigem gastadora chegou a alastrar ao sul da Europa, pois os italianos também entraram nesse clube bilionário em 2018 e 2019, ano em que também os espanhóis a ele aderiram. Isso foi, no entanto, sol de pouca dura: a pandemia acabou com as loucuras gastadoras na Europa do Sul. E provavelmente em boa hora o fez, tendo em conta as dificuldades atravessadas por alguns dos grandes clubes da zona.
Se em Inglaterra se bateram já os números de 2019 – passou-se de 1.450 milhões no pré-pandemia para os atuais 2.020 milhões, o que atesta um crescimento de 39 por cento – a austeridade continua a ditar leis pelo resto da Europa. A Liga espanhola tinha investido 1.380 milhões de euros em 2019 e até ontem ficou-se pelos 446 milhões em 2022. Há uma quebra de 67 por cento. Em Itália, passou-se dos 1.230 milhões em 2019 para os atuais 737 milhões – 40 por cento de quebra. A Bundesliga também baixou, de 747 milhões para os atuais 482, o mesmo sucedendo com a Ligue 1 francesa, que caiu de 711 para 472 milhões. É curioso que, certamente por estarem alimentadas pelo dinheiro que chega de Inglaterra – porque são duas Ligas formadoras ou no mínimo revendedoras – as Ligas portuguesa e neerlandesa sejam, a par de Inglaterra, as únicas no topo que já gastaram mais neste Verão do que tinham feito em 2019: no caso português, passámos de 150 milhões nesse ano pré-pandémico para 165 milhões em 2022. Somos, assumidamente, uma Liga satélite da Premier League, que neste Verão cá deixou precisamente esses 165 milhões só em quatro jogadores (Darwin, Matheus, Fábio Vieira e Palhinha).
A questão é que Inglaterra manda no jogo. Baralha, parte e dá. Tudo se faz ao ritmo que a Premier League escolhe. Sete dos dez clubes que mais dinheiro investiram neste mercado de Verão – e também pode consultar a lista aqui – jogam na Premier League. À cabeça de todos, o Manchester United, com 238 milhões de euros. Mas o Top 5 é todo ele formado por clubes da Premier League, nele entrando o Chelsea (186 milhões), o West Ham (182), o Tottenham (169) e o Nottingham Forest (157). Nos dez mais entram três clubes não ingleses: o FC Barcelona, em sexto lugar (153 milhões), o Bayern Munique em sétimo (137) e o Paris Saint-Germain em décimo (129). Os grandes portugueses ainda aparecem nos primeiros 40, o Benfica em 23º, o FC Porto em 32º e o Sporting em 36º. Em contrapartida, surgem muito bem colocados entre os que mais venderam, uma lista que é liderada pelo Ajax, com 216 milhões, na qual o Benfica é terceiro (122 milhões), o Sporting quarto (119) e o FC Porto 14º (86). E a coisa avoluma-se se mudarmos agulha e apreciarmos apenas a balança de transferências, isto é, o saldo entre compras e vendas: aí há oito clubes da Premier League no Top-10 dos que mais investiram, onde além deles só aparece o FC Barcelona das loucuras de Laporta (em sétimo lugar) e o Paris Saint Germain do dinheiro do Qatar (em nono).
A Premier League é um modelo de negócio incomparável. Fruto de uma tradição imperial que alarga a influência britânica a todo o Mundo, mas também de muita competência em todas as áreas, sobretudo no marketing, que a impôs como única Liga verdadeiramente global e capaz de ir buscar receita a todo o lado. Se há uns anos nos queixávamos de que o último classificado da Premier League ia buscar mais dinheiro à marketing pool do que faturam os três grandes de Portugal, hoje em dia já são os italianos que se lamentam disso mesmo. E atenção: estamos a falar da Série A, a última Liga a superar a inglesa em gastos de mercado – já aconteceu foi há uma eternidade, em 2011, antes de os ingleses darem o grande salto. O mercado livre tem destas coisas: cria monstros hegemónicos. E, como é evidente, esses monstros têm méritos. Os ingleses gastaram este ano três vezes mais do que os italianos no mercado e praticamente o mesmo que as outras quatro Ligas integrantes das Big Five juntas e não consta que os seus clubes atravessem grandes problemas financeiros – ao contrário do que sucede em Espanha, por exemplo, onde as notícias acerca de falências são coisa mais ou menos corriqueira.
As grandes questões que se colocam aqui prendem-se com o que devem fazer não só as outras Ligas como o próprio regulador - a FIFA. Devem as outras Ligas copiar o modelo de virtudes da Premier League na esperança de vir a florescer também? Mas haverá ainda espaço num mercado global que já está tomado? E, havendo – coisa de que duvido –, quantos anos levará a convencer os asiáticos, os africanos, os norte-americanos ou até os europeus a substituir a Premier League no topo da sua lista de preferências? Virá essa troca a tempo de evitar a morte das outras competições ou, na melhor das hipóteses, a sua transformação em alfobres de talento para o campeonato que verdadeiramente interessa? E, mais importante, deve o regulador impor limites a um negócio que floresce só em nome da necessidade de preservar a competitividade internacional? Este é um problema filosófico. Entendo as reservas dos puristas contra a criação da SuperLiga europeia, mas o que estes devem compreender também é que a economia a cria de qualquer modo. Que ela é inevitável. E está nas nossas mãos tentar, pelo menos, evitar que em vez da europeia venhamos a ter uma Superliga inglesa a secar todas as outras.