O fim das flash-interview
As flash-interview deviam ter morrido esta semana como atividade jornalística. As conferências de imprensa estão em perigo de vida há anos. Ao menos que este processo sirva para que se pense nisso.

O processo disciplinar instaurado pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol à jornalista Rita Latas, da Sport TV, foi um mero ato burocrático que certamente será arquivado, e que todos devemos aplaudir, porque virá provar a inconstitucionalidade de um regulamento que submete o jornalismo às compreensíveis necessidades de promoção de um evento e que pode contribuir – assim o aproveitemos para tal – para clarificar as águas cada vez mais turvas na fronteira entre o jornalismo e o entretenimento no que a futebol respeita. A jornalista fez o seu trabalho, e fê-lo bem. A Liga – extensão dos clubes – não quer situações potencialmente polémicas naquele espaço, que serve fundamentalmente para promover os seus patrocinadores, e está no seu direito. Este caso deveria servir para que já a partir de hoje deixasse de haver jornalistas nas flash-interview. E sobretudo para que pensássemos bem o que queremos das conferências de imprensa e até dos “relatos e comentários” – sendo que o que queremos nós, os jornalistas, não tem necessariamente de ser o que querem vocês, os consumidores, ou o que querem eles, os clubes.
Este caso explica-se numa penada. Na flash-interview do jogo Sporting-GD Chaves, Rita Latas, a jornalista da Sport TV designada para entrevistar o treinador leonino, Rúben Amorim, fez uma pergunta acerca de um tweet de Slimani, ex-jogador do Sporting que nessa semana tinha acusado Amorim de algo semelhante a nepotismo na gestão do plantel. A pergunta era não só pertinente como indispensável, na primeira vez que Amorim surgia face a jornalistas após o tal tweet. Amorim não pareceu incomodado, remeteu a resposta para a conferência de imprensa, mas o delegado do Sporting pediu na mesma ao delegado da Liga que mencionasse o “incidente” no relatório e o facto gerou o processo disciplinar à jornalista. Também a Liga – que, repito, é uma extensão dos clubes – fez o que devia na defesa dos seus interesses, que o público vê sempre como parciais, do clube A, B ou C, mas que na verdade são comuns e passam pela criação de um ambiente favorável, suscetível de trazer mais patrocinadores para aquele espaço. Não posso achar que os clubes estão mal quando incendeiam o espaço mediático com comentadores devidamente engajados nos programas televisivos, newsletters abjetas de parcialidade e insinuações ou momentos destinados a espalhar a intolerância pelo diferente nos seus canais e depois criticá-los se tentam manter limpo de polémica um espaço que lhes pertence e que têm o dever de controlar.
O problema, aqui, é que as flash-interview, de facto, não são espaço para jornalismo. São um mero acrescento promocional de um evento que a Liga vendeu a um operador que, em boa medida, é seu parceiro na busca de sucesso comercial. Se a classe jornalística em Portugal fosse forte – e a força, aqui, viria de condições muito diferentes das existentes hoje em dia, em aspetos tão fulcrais como a empregabilidade ou os salários praticados, que estão ao nível da mais absoluta miséria – não haveria a partir daqui mais jornalistas nas flash-interview. E estas poderiam ser conduzidas por apresentadores vindos da área do entretenimento ou por ex-jogadores que são ainda parte do espetáculo. E com isto não quero dizer que sejam mais ou menos importantes, inteligentes ou sérios do que os jornalistas – só não estão é vinculados ao mesmo código deontológico a que se obrigam os jornalistas, pelo menos até ao momento em que desistem e passam, também eles, a ser assessores de comunicação de um qualquer interesse parcial. No limite, a Liga e o operador até podiam optar por não ter lá ninguém, limitando-se a colocar ali um pé de microfone que permitisse que o homem do jogo fosse lá mostrar o prémio e mandar beijinhos à família e que os treinadores discorressem livremente sobre aquilo que lhes apetecesse. Aliás, já é um bocado isso que eles fazem, respondendo com bugalhos quando lhes perguntam sobre alhos.
O problema é que esta questão não se coloca só nas flash-interview. Alarga-se – e de que maneira – aos relatos e comentários dos jogos e às conferências de imprensa, também elas transmitidas em direto e, portanto, parte do espetáculo. Vou completar no próximo mês de Novembro 30 anos como comentador de jogos na TV – estreei-me na SIC, ao lado do José Augusto Marques, a 28 de Novembro de 1992, num Karlsruher-Bayern que, imaginem, até foi transmitido em diferido, um dia depois. Nestes 30 anos, muita coisa mudou na missão de comentar jogos, nomeadamente porque a popularização e a democratização da informação através da internet de certa forma vieram anular a missão de informar naquele espaço. Hoje, o que queremos é que o comentador descodifique o jogo nos planos tático e estratégico – e fui fazendo as minhas formações, lendo muito sobre o tema, mas nunca tive a pretensão de ser treinador – ou, e isso é que é mau, que ele seja uma espécie de entusiasta-mor, que nos anime para que possamos aguentar o “sacrifício” que é estar ali mais de hora e meia a ver 22 tipos a correr atrás de uma bola. Nestes 30 anos, como é evidente, fui juntando “haters”. Há os que me apontam o defeito de não entender rigorosamente nada de futebol, o que sendo um pouco apatetado me parece até interessante, como há os que, nos jogos da seleção, que comento de forma ininterrupta na RTP desde 2006, me acusam de torcer pelos adversários, tão pouco entusiasmo mostro. E já perdi a conta às vezes que, nas redes sociais, tentei explicar que sou jornalista, que no exercício da profissão não estou a torcer por ninguém, por mais que me alegre o coração que Portugal ganhe.
Já muitas vezes discuti o tema com colegas de trabalho. Afinal, qual é o nosso papel ali? Somos jornalistas ou agentes de uma indústria de entretenimento? É legítimo o entusiasmo sempre que a seleção – ou o clube, quando os jogos são transmitidos pelo próprio canal – se aproxima da área? Faz sentido aquilo que vemos nos canais dos clubes, quando transmitem jogos das suas próprias equipas, que são sempre maravilhosas, formidáveis e fantásticas e prejudicadas pela arbitragem? Afinal, a transmissão de um jogo é informação ou é entretenimento? E a questão é que isso não se fica pelos jogos propriamente ditos e já se alargou às conferências de imprensa, transformadas em apêndice do espetáculo e por isso mesmo também alvo de diretos nas TVs. Ainda me lembro de grandes conferências de imprensa dadas por treinadores na década de 90. Já na altura havia a pressão do direto, da busca do “soundbyte”, mas ela limitava-se a dois ou três companheiros das rádios, que não gostavam nada que houvesse uns malucos que iam para ali esmiuçar questões táticas, por exemplo. A partir do momento em que há cinco ou seis canais de TV em direto em cada conferência de imprensa – e que o tempo desta não é infinito, porque os treinadores também são hoje homens muito mais atarefados do que eram há 20 anos – já se vê que todo o evento fica condicionado ao que esses cinco ou seis canais querem perguntar.
Ora, como tentei explicar neste texto sobre jornalismo, um dos problemas do paradigma da informação gratuita num mercado tão pequeno como o português é que ela necessita da publicidade para se viabilizar – sendo que a publicidade precisa de audiências e as audiências vão mais atrás do soundbyte espetacular do que da verdadeira tentativa de esclarecimento. Chegámos ao ponto em que as próprias conferências de imprensa já não são assim tanto para jornalistas como deviam ser. Em 2017, quando lancei o Bancada, como tínhamos recursos limitados, decidi que não iríamos a conferências de imprensa – até porque, passando elas na TV, não podíamos tirar dali nada que o potencial consumidor não tivesse já visto. Preferi concentrar os recursos na produção de conteúdos próprios e diferenciados. Na altura, as vozes que se levantaram em contrário dentro da nossa organização não o fizeram por motivos jornalísticos, mas sim porque achavam que ter lá um jornalista e fazer uma pergunta seria uma boa forma de fazer “brand awareness” nos diretos das TVs. O meu Bancada falhou – culpa minha, acima de todas as outras – muito por não ter tido essa “brand awareness” que manda no futebol dos dias de hoje e no jornalismo a ele associado. Na altura, isso levou-me a mim a refletir bastante e a aborrecer com o produto das minhas reflexões aqueles que fazem o favor de me acompanhar na tentativa de fazer jornalismo independente e a solo, que dura há exatamente oito anos: fui demitido do Record a 1 de Setembro de 2014. Nunca pensei que o segredo estivesse num processo disciplinar. Mas se serviu para agitar as águas e levar até um ministro a preocupar-se com o problema, então este processo já terá valido a pena.