A visão de Salvador
O presidente do SC Braga cometeu erros na planificação da época e, mesmo que não os reconheça, dá sinais de que aprendeu. A visão de Salvador assenta na construção da equipa e na governança.
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O maior investimento da história do SC Braga está para já a resultar na perda de um lugar na tabela da Liga, do terceiro para o quarto, quando aquilo a que a conjuntura internacional obrigava o clube era a ganhar uma posição para continuar a jogar uma Liga dos Campeões que deslocou uma das suas vagas portuguesas para os Países Baixos. Mesmo tendo ganho a Taça da Liga, os onze pontos a que a equipa minhota já está do Benfica e da segunda vaga nacional na Champions levam a que a temporada tenha de ser internamente encarada como, já não diria um fracasso, mas pelo menos um compasso de espera na caminhada. E aprendizagem. É isso que, apesar dos mais de 20 anos que ele já leva à frente do clube, mais se lê na entrevista que António Salvador concedeu à edição de hoje de O Jogo, uma entrevista em que não deixou de enviar os recados que queria à Câmara Municipal, acerca do estádio, e aos sócios, a propósito da revisão falhada dos estatutos e da entrada do QSI no capital da SAD, mas da qual é possível extrair dois eixos de pensamento: a gestão desportiva do plantel e a exigência que tem de se meter na governação do futebol.
É normal que o tema do momento seja a posição de Artur Jorge à frente do plantel. Visto de fora – e sem ter falado com ninguém a este propósito –, a sensação com que fiquei foi a de que o SC Braga não se importaria de fazer a Artur Jorge aquilo que o FC Porto uma vez fez a Ivic. E, como o Mundo está muito mais global e já nem os jornalistas nem os adeptos “papam grupos” como antigamente, impossibilitando que o treinador fosse mandado “para a FIFA”, como foi uma vez o croata, a solução terá passado pelas sondagens vindas do estrangeiro, de clubes como o Spartak Moscovo. É tanto nesse sentido como no da eterna procura de António Salvador pela nova sensação do treino que devem ser enquadradas as notícias sobre a saída de Artur Jorge e a entrada de Daniel Sousa, o técnico que transformou o FC Arouca em equipa temida até pelos grandes. Afinal, Salvador tem um histórico a defender: apostou em Jesualdo Ferreira e em Sérgio Conceição antes de eles serem campeões no FC Porto, em Jorge Jesus antes de ele ser campeão no Benfica e em Rúben Amorim antes de ele ser campeão no Sporting, isto já para não falar no facto de ter sido ele a promover Abel Ferreira, Domingos Paciência ou Leonardo Jardim.
Às vezes as coisas não correm tão bem, mas em bom rigor nem pode dizer-se que tenha sido esse o caso com Artur Jorge, que não só conquistou um título – juntou-se a José Peseiro, Paulo Fonseca, Carlos Carvalhal e Rúben Amorim no lote dos que deram um troféu ao presidente – como acabou duas das suas três épocas (2020 e 2023) à frente de um dos grandes, sempre o Sporting. Se esta época a coisa pode não se concretizar – e não é impossível, porque está já a onze pontos do Benfica, mas apenas a cinco do FC Porto – talvez a responsabilidade não seja fundamentalmente do treinador, mas muito da forma como foi orientado o investimento no plantel, mais direcionado para uma profundidade e um capital de experiência que permitisse rodar e encarar a Champions olhos nos olhos do que para a fixação de um onze forte. De todos os candidatos, o SC Braga foi o que mais rodou: só tem três jogadores pelo menos 20 vezes titulares na Liga (Matheus, Borja e Ricardo Horta) contra oito do Benfica, cinco do Sporting e quatro do FC Porto. Além disso, no SC Braga 15 elementos começaram pelo menos dez jogos, mais dois do que no Sporting e no FC Porto e mais três do que no Benfica.
O tema foi abordado por Salvador nas explicações que deu acerca do meio-campo, zona em que o SC Braga teve sempre excesso de opções. Havia Vítor Carvalho, Castro, André Horta e Zalazar, além do jovem Djibril, da equipa B, para apenas dois lugares, mas a eles juntaram-se ainda João Moutinho, por uma questão de oportunidade, e Al Musrati, que não foi transferido no Verão, mas a quem o presidente decretou que “tinha atingido o pico da sua valorização”, chegando por isso a altura de se separar dele. Eram sete jogadores para duas posições na equipa. Um cocktail difícil de gerir. O foco na profundidade por oposição à aposta firme num onze mais forte foi complementado por alguma obsessão com a experiência capaz de garantir que a equipa não estranhava os acordes do hino da Champions, mas a realidade é que, com exceção de João Moutinho, nenhum dos consagrados – Fonte e Pizzi à frente de todos – fecha a época com saldo positivo. O que leva à conclusão de que a maior riqueza do clube é, como tem de ser, aquilo em que mais tem investido: a academia, de onde continuam a sair jovens em condições de alimentar a equipa principal. Já aí está Roger, um substituto quase perfeito para Djaló, que de certa forma poderá em Julho ajudar a superar a falta dos milhões que este ano chegaram da Liga dos Campeões através da transferência para o Athletic Bilbau. Porque Salvador sempre se habituou a fazer vendas por valores inflacionados no mercado nacional, mas é bem possível que essa porta se tenha vindo a fechar gradualmente, tanto por renitência dos rivais em pagar o que ele pede – e ele pediu sempre muito – como até por uma auto-avaliação do papel que o SC Braga desempenha no equilíbrio geoestratégico do futebol nacional. Se a ideia é um dia ganhar, tem de parar de dar armas aos adversários e de se bater com eles pelas que identifica.
Claro que, além da entrada do QSI – o acionista maioritário do Paris Saint-Germain – no capital da SAD, aspeto em relação a cujos benefícios no mais longo prazo tenho as maiores dúvidas (e expliquei aqui, aqui, ou ainda aqui as razões do meu pensamento), o SC Braga faz depender o crescimento de uma visão muito clara acerca do negócio do futebol. E, para isso, Salvador veio ainda meter alguma pressão – legítima, por sinal – em cima da Liga e do governo no que toca à centralização dos direitos televisivos e à necessidade, senão de a acelerar, pelo menos de respeitar os timings há muito para ela definidos. O ano de 2028 está ao virar da esquina e continuam a sobrar dúvidas acerca da capacidade do futebol para se auto-regular em temas tão sensíveis como o da compra das SAD por gente sem capacidade ou idoneidade para as gerir ou então sem uma visão para o que elas deverão vir a ser. Não faz, de facto, qualquer sentido que a sétima Liga da Europa – e já foi a quinta, em termos de ranking – continue a albergar equipas que não têm casa, que não cumprem requisitos mínimos para a jogar, seja em termos de transparência ou até de apoio popular. Esse é o passo que ainda tem de se dar antes de chegar a desejada centralização. E nele, Salvador quer apanhar a carruagem da frente.