O lado obscuro do fair-play
O Nottingham Forest ficou sem quatro pontos e caiu para baixo da linha de água na Premier League. Em causa estão as regras de fair-play financeiro. E a questão: estaremos a fazer isto da forma certa?
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A ler as declarações de Paulo Sérgio, que à margem do fórum da Associação Nacional dos Treinadores de Futebol, em Viseu, disse que recusava virar as costas à luta do Portimonense para fugir à descida de divisão, classificando até o ato como “uma cobardia”, recordei-me das caraterísticas tragicómicas que estas coisas por cá assumiam nos anos 80, quando os clubes despediam treinadores em catadupa, substituindo os que tinham por outros que acabavam de ter sido despachados por rivais, em tentativas desesperadas de salvação. E, honestamente, não sei o que é mais ridículo, se a memória desses tempos felizmente ultrapassados com uma dose razoável de bom-senso se a constatação dos castigos, recursos, reduções de pena e protestos, que por estes dias tornam incerta a parte mais baixa da tabela da Premier League. O Nottingham Forest, onde Nuno Espírito Santo está a cumprir a comissão de serviço atual, acaba de ser castigado pela Premier League com a dedução de quatro pontos por ter superado o total de perdas financeiras admissíveis a três anos, o que o levou a passar para trás do Luton Town e a entrar em zona de despromoção. É justo. Mas do clube veio um argumento: o que estas regras fazem é eternizar a hierarquia e impedir a mobilidade ascensional dentro da pirâmide. O que também é verdade.
Apesar de todo o seu passado de ligação ao poder no Pireu e de, bem vistas as coisas, ser ele o verdadeiro xerife de Nottingham, Evangelos Marinakis, aquele colossal milionário grego que antes de ser dono do Forest já mandava no Olympiakos e que está para ficar também com a SAD do Rio Ave, já esteve mais longe de se mudar para a floresta de Sherwood e de passar a usar o arco, a flecha e a retórica de Robin Hood em defesa “dos fracos e dos oprimidos”. É que já parece mais ou menos claro que esta vai ser a primeira vez que as descidas da Premier League serão definidas pela aplicação das regras de sustentabilidade, uma espécie de “fair-play financeiro” à inglesa. O Everton também já foi castigado com a subtração de dez pontos, depois reduzidos a seis, por ter registado um prejuízo a três anos superior ao permitido em 22,8 milhões de euros. Ora, de acordo com as regras, nenhum clube pode acumular nas contas a três anos um prejuízo superior a 122 milhões de euros. Somadas as perdas das últimas três temporadas, o Forest vai com 111 milhões no vermelho, mas tinha um limiar inferior, porque dois destes três anos passou-os no Championship, o segundo escalão inglês. A constatação das perdas bate certo com a política de aquisições agressiva e até algo tresloucada promovida pela gestão de Marinakis, sobretudo desde o Inverno passado, uma janela de transferências no seguimento da qual o clube acabou por assinar a recuperação e garantir a manutenção na Premier League. Ainda assim, não chega para afastar outras duas preocupações que não são menos importantes.
A primeira é de apreciação mais difícil e pode até ser preconceituosa: alegam os clubes menos poderosos que aos seis grandes – os dois de Manchester, o Liverpool FC, o Arsenal, o Chelsea e o Tottenham – nunca acontece nada, por mais falta de cooperação que revelem perante os auditores ou por mais escandalosas que sejam as suas campanhas gastadoras. Neste plano, está tudo à espera de ver o que vai acontecer com o Chelsea no Verão: as contas oficiosas que os jornais fizeram dizem que o Clearlake Capital, o fundo que comprou o clube a Abramovich, terá de vender 100 milhões de euros em jogadores antes de poder investir no que quer que seja, mas em Stamford Bridge isso tem sido constantemente negado. E a curiosidade alarga-se às contas que há-de apresentar o Newcastle United, também altamente deficitário nos mercados de transferências desde que o dinheiro saudita lhe permitiu, primeiro, escapar a uma descida de divisão que parecia certa, em 2022, e depois qualificar-se para a Champions, em 2023. E os nordestinos são o exemplo perfeito para ilustrar as preocupações emanadas em comunicado pelo Forest neste momento. “O racional da comissão é o de que os clubes só poderão investir depois de terem lucrado com desenvolvimento de jogadores. Este raciocínio destrói a mobilidade na pirâmide do futebol e o seu efeito será a redução drástica da margem de manobra para os clubes, levando à estagnação do jogo”, lê-se na argumentação vinda de Nottingham.
A última coisa que pode dizer-se é que este argumento não faz sentido. Esta era uma ideia muito popular em França, quando os cataris da QSI compraram o Paris Saint-Germain com o objetivo de lutar por troféus continentais. Como era possível superar os gigantes europeus, se o clube não gerava renda que lhe permitisse concorrer com eles na luta pela contratação dos melhores jogadores? Em Paris, a coisa resolveu-se de forma imaginativa: bombaram a receita através de contratos de marketing e publicidade, levando a UEFA à necessidade de estabelecer uma espécie de benchmark para essas coisas e a fixar limites à faturação registada para efeitos de contas. Mas o Forest já veio tarde. E, sendo evidentes os benefícios destas regras quando se trata de prevenir falências ou quedas nos infernos da insolvência, impondo às gestões dos clubes um atitude bem mais cautelosa face ao desconhecido, à bola que pode entrar e garantir uma manutenção ou sair a levar à descida de divisão, não é menos claro que elas acabam por tornar impossível a vida para os chamados clubes-elevador, aqueles que andam num sobe-e-desce permanente. O Burnley FC, o Sheffield United e o Luton Town subiram esta época e, não fosse a punição ao Forest, estariam nas três últimas posições e em primeira linha para ir de volta para baixo. O Fulham AFC subiu em 2018, desceu em 2019, subiu em 2020, desceu em 2021, subiu em 2022 e, na época passada, pela primeira vez nesta sequência, conseguiu a manutenção. Sete dos 15 últimos clubes a subir à Premier League desceram de volta num ano, havendo mais um que o fez em duas épocas e outro em três.
Controlar o risco de insolvência através da limitação da despesa é uma forma de eternizar as diferenças entre os privilegiados e os que nunca lá chegarão, tão gigantesca é a décalage entre as receitas audiovisuais garantidas na Premier League e no Championship ou a relutância dos clubes do campeonato principal em subscrever um acordo que permita cumprir as exigências do regulador governamental quanto à criação de vasos comunicantes que deixem escapar as verbas capazes de alimentar as bases da pirâmide. E que seriam um fraco consolo e uma forma provavelmente demasiado lenta de promover a competitividade. E se esta é uma questão que se coloca na Premier League, é uma questão que nos grita aos ouvidos quando comparamos o dinheiro que garante a participação no campeonato inglês e o que entra nos cofres de quem joga outras Ligas, como a portuguesa, por exemplo – o que vem sublinhar as dificuldades cada vez maiores para competir internacionalmente sem um lastro grande de investimento inicial, possivelmente assumido a fundo perdido ou apenas recuperável a um mais longo prazo e, já se sabe, se a bola entrar e não bater no poste. O futebol precisa de resolver urgentemente a questão dos investimentos irresponsáveis, mas sobretudo quando eles servem para mascarar esquemas de lavagem de dinheiro ou de outro tipo de fraudes – e em relação a isso pouco vai sendo feito. Quando o que se pretende é tornar um clube competitivo e, mais para a frente, recolher dividendos do investimento, é preciso encontrar mecanismos que não limitem esse crescimento.
O Nottingham Forest campeão da Europa em 1979 começou com um investimento na equipa que se viu aflita para subir de divisão em 1977 – fê-lo por um ponto, à frente do Bolton e do Blackpool –, investimento esse que provavelmente não seria permitido pelas regras atuais. Campeão inglês em 1978, logo no primeiro ano na Division One, o Forest não se deixou iludir pelos sete pontos que obteve de avanço sobre o Liverpool FC, que era bicampeão europeu. E continuou a gastar. Na história ficou a contratação de Trevor Francis, o primeiro jogador de um milhão de libras no futebol britânico. Ou então não, porque como recordava Brian Clough, o mítico manager daquele Forest, fez ponto de honra em não chegar a esse valor, pagando 999.999 libras ao Birmingham City pelo atacante que marcou o golo na final contra o Malmö FF. “Eu não queria pagar um milhão de paus. Não sei porquê, talvez fosse uma espécie de bloqueio mental”, escreveu o polémico treinador na sua autobiografia. Naquele dia, Clough inventou o fair-play financeiro. Mais de 40 anos depois ainda andamos a tentar fazê-lo funcionar.