Vergonha, verdade, justiça e negócio
Para entender a complicada relação entre uma Liga profissional e a gestão da pandemia é preciso enquadrar estes quatro conceitos. A Liga portuguesa só chegou ao primeiro.
A explosão de casos de Covid19 no Estoril vai fazer crescer o termómetro na Liga, também ela infetada, ainda que por um vírus contra o qual não se conhece cura ou vacina: o vírus da desonestidade, que leva os seus membros a procurar sempre tirar vantagem de qualquer tipo de situações. Perante o cenário que está a montar-se, haverá sempre quem tenha razão de queixa. Queixar-se-ão o Estoril e os rivais do FC Porto se houver jogo com a equipa canarinha seriamente debilitada. Queixar-se-á o FC Porto se, tendo o Estoril pelo menos 13 jogadores, nem que para tal no lote se incluam um perneta e dois coxos, o jogo for adiado. E queixam-se já os adeptos e comentadores mais fanáticos e ressabiados, porque acham que as Ligas se ganham e perdem nos adjetivos usados pelos jornalistas e entendem que este caso não está a ser tratado com a mesma contundência com que foi o Belenenses SAD-Benfica. A verdade é que não há boa forma de sair deste imbróglio que os clubes criaram a si próprios, porque não agiram atempadamente.
Não há-de ser fácil gerir uma Liga profissional em tempos de pandemia. Aos conceitos de vergonha, verdade, justiça e negócio poderia juntar um quinto, o de segurança sanitária, se ele não estivesse a ser assegurado por uma entidade externa, a Direção Geral de Saúde – que, se há coisa de que não pode ser acusada, é de não ser cautelosa. Ainda ontem, no Futebol de Verdade, um espectador me perguntava se eu não achava melhor parar o campeonato, face ao pico da pandemia que aí vem. Acho que não. O que tenho visto são jogadores infetados com Covid19 cumprirem os dez dias de isolamento sem sintomas e jogarem como se nada se tivesse passado ao 11º. Esta noção empírica, somada à análise dos números – quatro ou cinco vezes mais casos mas o mesmo número de internamentos face ao período homólogo de 2021 – e à revelação feita pelo Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Lacerda Sales, segundo o qual 90 por cento dos internados em cuidados intensivos não estão vacinados, leva-me até a admitir uma via mais liberal de gestão da pandemia e a perguntar por que razão os infetados não podem treinar e jogar. Percebo as cautelas da DGS, que está a jogar com vidas humanas, mas esse será inevitavelmente o futuro.
Perante o estado atual de coisas, porém, a Liga não pode fazer nada na questão da segurança sanitária. Restavam-lhe os outros quatro conceitos: vergonha, verdade, justiça e negócio. Ando desde Setembro de 2020 a alertar para a necessidade de alterar os regulamentos, de forma a que os três sejam contemplados nas preocupações dos legisladores, mas só depois do Belenenses SAD-Benfica é que os clubes mexeram no enquadramento das competições – e para responder apenas ao primeiro. Não só foi insuficiente, como rapidamente se percebia que ia gerar mais problemas, como alertei aqui e aqui. No Belenenses SAD-Benfica, a equipa da casa só tinha nove jogadores disponíveis, entre os quais dois guarda-redes. Mesmo assim, porque não havia no Regulamento de Competições uma norma a enquadrar a possibilidade de adiamento – as leis gerais do futebol estipulam que se pode jogar desde que cada equipa tenha um mínimo de sete jogadores –, o jogo foi avante e acabou no início da segunda parte, já com 7-0 a favor dos encarnados e os azuis reduzidos a seis homens. Foi uma vergonha, um atropelo à verdade desportiva, uma injustiça e um tiro no negócio, que foi alvo de chacota e nesse dia se fartou de receber publicidade negativa.
Com a casa roubada, a Liga – que são os clubes, é bom lembrar – meteu trancas à porta. E fez a meio do campeonato a alteração ao regulamento, estipulando que a partir daquele dia só se jogava se os dois clubes tivessem pelo menos 13 jogadores. É uma regra copiada da que vigora, por exemplo, na Premier League – ainda que a direção da Premier League tenha depois o poder para adiar jogos por razões que só a ela dizem respeito, que a Liga Portugal não tem, uma vez que por cá isso só pode ser conseguido com acordo dos dois clubes. Com a alteração feita, impede-se a vergonha de ver outra vez uma equipa a jogar com nove. Mas não só não é defendida a verdade desportiva como se criam situações de injustiça. Verdade desportiva é todos os candidatos ao título terem de defrontar os adversários nas mesmas condições, não é uns jogarem contra a equipa principal de um determinado adversário e outros defrontarem os sub23 desse mesmo adversário. Por outro lado, justo é as regras não mudarem a meio de uma competição, dessa forma criando a uns problemas que outros puderam evitar: por que razão é que o FC Porto não há-de poder defrontar o Estoril sub23, se o Benfica pôde jogar contra nove sub23 da Belenenses SAD? Criou-se o caldo perfeito para que, como quer que se resolva o caso do Estoril-FC Porto, alguém tenha sempre razão para se queixar: se se jogar, queixam-se estorilistas, mas também benfiquistas e sportinguistas, que tiveram de defrontar o Estoril na máxima força; se não se jogar, queixam-se os portistas, porque não há nada nos regulamentos que impeça o Estoril de ir a jogo com os sub23 e o Benfica já teve a benesse de defrontar a Belenenses SAD em piores condições.
Foi a pensar nisso que, há ano e meio, em Setembro de 2020, sugeri a criação do conceito de “jogador nuclear”, que depois voltei a explicar aqui, aquando do surto no Benfica, há um ano. Defendo desde Setembro de 2020 que um clube devia ter o direito a adiar um jogo desde que privado de pelo menos seis jogadores nucleares pela pandemia, pois acho que essa é a única forma de assegurar a verdade desportiva de uma competição que precisa disso para ser um negócio viável. Se for esse o caso do Estoril – e volto a dizer que só saberemos no dia, com a revelação dos casos positivos – é evidente que acho que o Estoril-FC Porto deve ser adiado, como devia ter sido adiado o Belenenses SAD-Benfica. Admito que a regra pudesse provocar uma onda de adiamentos e atrasar a Liga ou obrigar os clubes a jogar duas vezes por semana lá mais para o fim. Mas em defesa do negócio, da verdade, da justiça e de forma a impedir mais vergonhas, tudo é preferível ao que está a desenrolar-se.
Até quando vamos levar com uma liga assim ? Se o presidente não tem poderes ainda não percebi o porquê de haver um presidente, é que no fim das contas ele está só ali para dizer que temos um presidente da liga. Isto é completamente ridiculo. Será assim tão difícil copiar um modelo melhor tipo o da Premier league ou parecido em que há verdadeiramente gente que manda e ponto final. Ou dar á FPF a liga e ser o Presidente a mandar como para a taça de Portugal em que os jogos são adiados e não há barulho porque ali já há quem mande. Os clubes portugueses estão mal habituados, fazem o que querem lá dentro da liga e ainda não estão preparados para essa mudança radical em que mandam zero.
Mas acho que o nosso futebol só ficaria a ganhar e a verdade desportiva também.
"A direção da Premier League tenha depois o poder para adiar jogos por razões que só a ela dizem respeito...". Está tudo dito, Tadeia.
Lá, ao contrário daqui, a Liga manda. E claro que adia jogos sem se importar com questões televisivas.
Só tenho um reparo a fazer ao seu projeto. Antes, verdade seja: é coerente e bate-se por ele sempre que estas questões da pandemia são levantadas. Mas qual é a objeção? Porquê 6 e não 7 ou 5?
Por mim, sempre que se justifica um surto destes, que inclua quase uma equipa de campo (11), os jogos devem ser adiados. Mas o que isso de utilizar sub23? E se estes tiverem infetados vamos por aí abaixo (juniores.....)? Sei que não. Foi só uma piada para desanuviar este clima pandémico, de que todos estamos fartos.