Rúben Amorim, o idealista
A unanimidade em torno da escolha de Rúben Amorim como figura nacional do futebol português em 2021 vai muito para lá do facto de ter sido campeão. Há ali um idealismo que o faz especial.
Os três jornais desportivos entregaram os seus prémios de final de ano a Rúben Amorim, que também foi o escolhido por todos os subscritores que recebi no Futebol de Verdade Especial de ano novo como figura nacional do ano em 2021. Não é estranho que assim seja: todos os anos, pelo menos ultimamente, o treinador campeão nacional tem sido escolhido como o protagonista dos doze meses que acabámos de deixar para trás, como se isso fosse uma obrigação. Em Rúben Amorim, no entanto, há algo mais, há uma espécie de idealismo, uma coerência entre ação e discurso, uma forma de fazer diferente que, sendo eles também muito diferentes, eu já não via no futebol português desde que ele foi arrasado pela eclosão do jovem Mourinho, em 2002.
O que há de especial em Amorim não se explica apenas com o facto de ter sido campeão no Sporting, que não ganhava a Liga há 19 anos – se fosse por isso, Jorge Jesus e Sérgio Conceição também interromperam raros jejuns de cinco anos no Benfica e no FC Porto. O que há de diferente em Amorim é que o fez com uma mensagem que faz sentido no projeto desportivo do clube e, sendo absolutamente intransigente na defesa das suas ideias, teve a felicidade de os resultados o validarem a ponto de o tornar um guru de uma determinada forma de fazer grupos. Uma espécie de Master Yoda da aposta na formação, uma figura em torno da qual se aglutinam os que pensam como ele e que até deixou para a história frases transformadas em hashtags. O “e se corre bem?” ou o “onde vai um vão todos” – este até dito de forma peculiar, com um erro gramatical pelo meio, como que para ser fiel à figura do homenzinho verde que comandava o lado bom da força na Guerra das Estrelas – podiam até ser vistos como grandes linhas programáticas do Amorinismo.
É possível gostar mais ou menos do futebol de Amorim, baseado numa estrutura inamovível – e isso já é ponto de embirração para alguns, que precisam de ver fórmulas diferentes e não acreditam na mudança das caraterísticas da equipa exclusivamente através da alteração das caraterísticas dos jogadores que ocupam as várias posições dentro dessa estrutura. É possível gostar mais ou menos do jogo de esticões que é promovido pelo Sporting de Amorim, que atrai atrás para ferir na frente, que atrai à esquerda para entrar pela direita, ainda assim fazendo do preenchimento do corredor central a sua maior arma. Mas não é fácil negar-lhe o mérito de uma visão que transformou um grupo perdido – dos jogadores ao presidente – num coletivo ganhador. Essa visão já a expliquei aqui, por oposição à de Jorge Jesus. Não é melhor nem pior que qualquer outra, mas era a única que fazia sentido num clube com as dificuldades que o Sporting apresentava. E está muito longe de se extinguir numa ideia de “apostar na formação”.
Era preciso criar condições para que a aposta fosse bem sucedida, não cedendo um milímetro no caminho. E, sem lhes negar a importância, não falo nos colchões ou do número de relvados disponíveis na Academia de Alcochete. Falo da opção por um plantel curto, de modo a que todos os seus componentes estejam permanentemente mobilizados e motivados. De assumir que se era preciso correr riscos de ter de virar jogos com o Geny Catamo ou de jogar com o Dário Essugo, pois que seja. O mais normal até seria correr mal. Paulo Bento, que teve uma geração até mais talentosa do que esta, esteve perto de lá chegar mas não foi campeão. E não é preciso encontrar erros na forma como o atual selecionador da Coreia do Sul fez as coisas para explicar a diferença. A diferença, aqui, fez-se nos resultados, na frase de Amorim na apresentação (“e se corre bem?”) e no que isso permite mudar na comunicação global para o exterior. A imagem do treinador deixa logo de ser a do tipo permanentemente crispado – que será o que todos mais recordamos de um Bento de fato, gravata e mau penteado – para ser a do tipo divertido, uma espécie de irmão mais velho dos seus jogadores.
Podem desprezar à vontade estes aspetos, ou o trabalho que tem vindo a ser feito pela comunicação do Sporting no YouTube, por exemplo – as queixas antigas acerca de arbitragens e as suspeições sobre os rivais ficam guardadas para a televisão, que é coisa de velhos – mas também isso tem sido fundamental na explosão de Amorim e na construção da sua figura. E essa é outra similitude com o jovem Mourinho, que estabeleceu com aquela equipa do FC Porto de 2002/03 ou até com o Benfica de 2000/01 um pacto de sangue que depois não foi capaz de manter ao longo da carreira, quando o sucesso lhe deu mais e mais meios para se repetir.
Amorim ainda está longe de Mourinho, porque o futebol Europeu mudou muito nestes 20 anos. Cumpriu a etapa de Leiria em Braga, com uma passagem curta e bem sucedida, mas para repetir no Sporting o que o “Special One” obteve no FC Porto precisaria de voltar a ser campeão este ano – e mesmo assim faltar-lhe-iam os sucessos internacionais, a Taça UEFA e a Liga dos Campeões, que no contexto atual estão vedados a equipas portuguesas. Mas não será difícil de adivinhar que em breve o treinador do Sporting vai ser chamado a outros palcos. Pode nem ser já em 2022, pode nem ser num clube montado em milhões, como era o Chelsea de Abramovich em 2004, mas há-de acontecer. E esse vai ser o grande desafio. Para o Sporting, que nessa altura terá de encontrar quem mantenha esta coerência idealista no projeto, mas também para Amorim, que terá de se reinventar.
Totalmente de acordo com o artigo !!! Excelente e completa análise!
Infelizmente como Sportinguista, penso que Rúben está destinado a outros voos (talvez só em 2023?) e concordo que será decisiva a escolha do seu substituto para a continuidade do projecto (veja-se o caso do Benfica em que o regresso de JJ colocou o projecto/estratégia em causa).
Também acho que a comunicação do Ruben é realmente importante pela aborgadem positiva, clara, honesta e tranquila fugindo o possível aos famosos mind-games e intrigas/troca de acusações que se vê noutras conferencias de imprensa e isto levou muitos adeptos de futebol a voltarem a ouvir as mesmas e a cada vez mais discutir futebol (forçando depois também a imprensa a mudar a sua postura nas outras conferencias também)
PS: peço desculpa pelos acentos, mas isto com um teclado francês é muito + dificil
Tadeia, bom ano.
Só para lhe lembrar que nem sempre os treinadores campeões são as figuras do ano. Em 2020, A Bola, e bem, escolheu o piloto de motos, Miguel Oliveira.
Este ano, o unanimismo foi total. Sim, já o disse no FV especial, Rubem Amorim concilia rigor tático com emoção, comunicação genuína com pragmatismo, aquando do célebre "onde vai um vão todos". Sim, e como sempre digo, tudo isto é bonito quando a bola entra. Pois é, "e se corre bem?". Não sei no que RA se vai tornar mas já o disse, também por aqui, que estou convencido que mais depressa vai ele para o estrangeiro treinar que JJ ou SC. E não me venham dizer que o Atlético Mineiro ou o Nápoles são grandes equipas. Lutam, mas, normalmente, morrem na praia. Já sei que o primeiro foi campeão do Brasil. Há quantos anos não era?