Um filme só com vilões
Do episódio da carga policial em Alvalade, no sábado, ninguém sai bem. Nem a Juventude Leonina, nem a polícia, nem o Sporting, nem o governo. As razões são fáceis de entender.
O incidente que meteu carga policial sobre os adeptos no topo sul do Estádio José Alvalade, na primeira parte do jogo entre o Sporting e o Casa Pia, é um daqueles casos em que ninguém esteve bem. Leram bem: ninguém. A não ser, provavelmente, quem foi ali apanhado por um mero acaso, como aquele cidadão de muletas que surge num vídeo a ser derrubado por um polícia demasiado zeloso ou o outro, de panamá na cabeça, a quem de nada serviu levantar os braços: comeu na mesma. Não sai bem a polícia, que usou força excessiva. Não esteve bem a Juventude Leonina, que continua a achar que a forma de combater uma lei idiota é violá-la e, além disso, persiste em colocar a sua agenda acima dos interesses do clube que pretende apoiar. Não esteve bem a direção de Frederico Varandas, autora de um comunicado que coloca o peso no diferendo com o grupo e não na violência de que foram alvo adeptos inocentes. E, nisto tudo, não está bem o governo, que quer transformar Portugal num retângulo de apoio assético que não existe em mais lado nenhum no Mundo e com isso está a matar boa parte da vontade que as pessoas têm de ir ao futebol.
Diz a Polícia de Segurança Pública, em comunicado, que usou a “força necessária à situação em concreto” para “preservar a integridade física de todos os espectadores”. E qual era a situação em concreto? Continua a PSP, explicando que houve “lançamento de foguetes” – e houve, talvez uma meia-dúzia – e que eram visíveis na bancada “tarjas de teor ofensivo para as forças policiais”. Alega ainda a polícia que só começou a usar força quando foi recebida à cadeirada pelos prevaricadores, o que é verdade. Pena que para chegar a quem estava a arremessar cadeiras tenha tido de arrasar tudo pelo caminho, incluindo o tal cidadão de muletas e outros incautos que só estavam ali para ver a bola. E o que é grave aqui é que ninguém se toca, ninguém vê que não estamos num estado policial e que o uso de um capacete de viseira negra, ombreiras e cassetete não nos dá o direito de arrasar tudo à passagem. Além de que, entendendo eu que o insulto a uma força da autoridade é mais penalizado do que um insulto a um cidadão comum, se a exibição de uma tarja com a sigla ACAB – “All Cops Are Bastards” em código que só aquela malta entende – dá direito a intervenção policial musculada, o que dizer de insultos muito mais diretos que se veem por todos os estádios em todos os fins-de-semana? Das tarjas a chamar “esclavagistas” aos novos acionistas do SC Braga ou da que insultou o Benfica na VCI do Porto no dia do clássico? Ou dos “carinhos” com que todos os dias há quem venha presentear-me nas redes sociais, alguns deles com ameaças concretas? Podem começar pelo meu Facebook? Obrigado. Vou esperar sentado.
Tem então razão a Juventude Leonina? Não. E não, logo à partida, porque a contestação à lei não deve ser feita violando essa mesma lei. Sim, toda esta trapalhada do cartão do adepto e das ZCEAP já fede, está a acabar com o apoio organizado ao futebol em Portugal – e talvez até fosse esse o objetivo – e, de caminho, está a reduzir as assistências para metade, fruto do abandono a que ficam vetadas franjas significativas dos estádios. Mas bastou-me ouvir, ao fim da noite, as palavras de um responsável da claque leonina para lhes adivinhar a agenda. António Cebola dava o exemplo do FC Porto e dos Super Dragões, dizendo – e eu não sei se é mesmo assim... – que a claque azul e branca viola a lei, usando bandeiras e outros artefactos de apoio que lhe estão proibidos, mas que Pinto da Costa a apoia e depois lhe paga as multas. No fundo, o que as claques querem não é apoiar. É vender serviços. É colocar-se ao serviço, não dos emblemas, dos clubes ou dos jogadores, mas das direções. Uma direção boa e digna de apoio é uma direção que lhes paga os excessos – e que, quem sabe, estabelecendo essa relação direta, até lhes encomenda mais meia dúzia de tarefas, transformando as claques em braços armados de um poder que assim se eterniza. Varandas não quer isso – e faz muito bem. Resta perceber se – como se desconfia – é isso que faz com que a claque seja há anos contra-vapor a esta direção. Porque se a claque está no estádio para apoiar a equipa, não ignora o facto de esta estar a batalhar para virar um jogo fulcral para se manter viva na Liga para começar a cantar “E ó Varandas, o que é que fazes aqui?”. Levaram uma lição de moral de Porro a seguir ao segundo golo – e com toda a razão. Porque eles não querem saber do Sporting. Querem saber deles mesmos e das condições que lhes são dadas para continuarem a sua atividade.
Tem então razão Frederico Varandas? Não. E não, porque uma coisa é a luta justa contra a transformação das claques em milícias, outra é o cumprimento da lei – mesmo de uma lei que não serve – e outra, ainda, é sacrificar a estas duas primeiras a noção de normalidade que a carga policial desmedida veio subverter. Em nenhuma passagem do comunicado emitido pelo Sporting se faz a condenação da força excessiva evidente da carga policial. E quatro dos cinco parágrafos são marcados pela crítica à claque ou pelo anúncio da vontade de colaboração com as autoridades policiais. Além disso, há um primeiro parágrafo que é o pior de todos. O comunicado começa por dizer que o Sporting “lamenta e repudia os episódios de violência”, não esclarecendo se se refere à meia-dúzia de foguetes que foram lançados, à entrada do corpo de intervenção da PSP, ao arremesso de cadeiras ou à carga policial cega que se seguiu. Dá para os dois lados – o que não é sinónimo de coragem. E não vou ao ponto de achar que Varandas deve apoiar uma associação que depois pretenderá mantê-lo refém, mas não pode travar esta luta sem coragem e com comunicados pouco claros.
PS – Não me referi, propositadamente, aos que batiam palmas com ar divertido e justiceiro enquanto a polícia carregava em cima de outros cidadãos a uns metros de distância. Sabem porquê? Porque eles nem merecem. Felizmente, nunca vivi num regime autoritário, mas sei bem no que é que essas pessoas se transformam nessas circunstâncias. Há uma palavra feia, de quatro letras, que os carateriza.