Os dois problemas do Sporting
O Sporting está uma sombra da equipa que foi em função de dois problemas. Um é tático e prende-se com o acanhamento ofensivo inicial. Outro é físico e tem que ver com a quebra nas segundas partes.

Palavras: 1582. Tempo de leitura: 8 minutos (áudio no meu Telegram).
O embaraçoso 0-3 com que foi derrotado em casa pelo Borussia Dortmund, na primeira mão do playoff de acesso aos oitavos-de-final da Liga dos Campeões, mostrou de forma evidente os dois maiores problemas que o Sporting encara atualmente. Um é tático e tem impedido a equipa de capitalizar em cima de primeiras partes geralmente controladoras mas quase nunca afirmativas nas perspetivas da criação e da finalização e, consequentemente, do conforto nos resultados. O outro é físico e, por mais que consiga ver alguma racionalidade estratégica na defesa do secretismo em torno da situação de Gyökeres, feita por Rui Borges na conferência de imprensa, vai muito para além da lesão ou da recuperação do goleador sueco, porque tem vindo a causar o desabamento coletivo em segundos tempos que, a tornarem-se rotineiros, levarão os leões a perder muito mais do que a Champions. O Sporting parece neste momento a equipa mais cansada da Europa e isso, bem mais do que a situação clínica deste ou daquele elemento, carece de explicação por parte dos responsáveis.

A conferência de imprensa que se seguiu ao desafio de ontem foi muito centrada em Gyökeres e infelizmente quase nada virada para os sintomas de fadiga do resto da equipa. Gyökeres é o jogador mais impactante da nossa Liga e é normal que os adeptos queiram saber se e quando ele voltará a estar em condições. Para os jornalistas, também é ele que dá melhores títulos e soundbytes mais sonantes, em função desse interesse dos adeptos, pelo que é a ele que vão sempre parar. Rui Borges diz que está a proteger o jogador quando se recusa a especificar o problema de que ele sofre – se disser que é no joelho, no adutor, na coxa, seja onde for, estará a dar armas aos adversários, que poderão explorar essa vulnerabilidade. Até o entendo, ainda que me pareça que neste momento o secretismo é o maior inimigo de clube e jogador, porque abre o campo a teorias da conspiração inconcebíveis e surreais, como as que dizem que o Sporting lhe esconde uma lesão grave para o vender no Verão – como se alguém comprasse sem lhe fazer os óbvios testes médicos – ou que ele inventou a dor porque quer ir embora. O segredo até seria possível num obscuro jogador de plantel, mas não no melhor jogador da Liga. E, que me perdoem o treinador do Sporting e os companheiros que lhe têm feito as perguntas, a questão vai neste momento bem para lá da situação de Gyökeres, da inexplicada lesão de Pedro Gonçalves ou da gestão que o técnico faz de Morita, Bragança, Quaresma ou Inácio. A questão é que os que jogam parecem acabar os jogos mortos de cansaço. O próprio Rui Borges falou ontem, sem complexos, em “défice físico”. E isso não se vê em mais nenhuma equipa europeia.
Os sintomas repetiram-se nos últimos dois desafios, marcados por segundas partes em que os leões encostaram atrás e se permitiram ser dominados por FC Porto e Borussia Dortmund, no Dragão resistindo até ao empate, obtido já em período de compensação, ontem acabando clamorosamente derrotados. Logo se apontou o dedo a Rui Borges e a uma suposta ordem de recuo dada para defender a vantagem, mentalidade que alegadamente será própria de um “treinador de equipa pequena”. Mas se essa ordem de recuo até faria sentido no Dragão, onde o Sporting foi para o intervalo em vantagem, já seria inconcebível face ao 0-0 com que a partida de ontem chegou ao descanso. É claro que só quem assistiu às conversas do treinador com os jogadores no intervalo dos jogos pode saber o que foi dito. Mas é também evidente que, tratando-se de homens e não de máquinas que executam este ou aquele programa pré-concebido, a atuação dos futebolistas está sujeita a outras influências. Daí que Rui Borges tenha ontem falado da questão anímica, do facto de a equipa ter perdido controlo emocional após o primeiro golo do Borussia, entrando num jogo mais partido e sujeito a transições, que beneficiavam os alemães. Acontece que, ontem, já antes do golo inaugural a equipa visitante virara o jogo a seu favor, concentrando-se junto da área leonina. Gyökeres esteve quase cinco minutos na lateral para entrar, só o fazendo aos 59’, por causa de uma sucessão de cantos e livres laterais a favor dos alemães. E só um minuto depois de ele ter posto os pés em campo é que Guirassy abriu o placar.
Tal como no jogo do Dragão, a ideia com que fiquei não foi a de uma equipa a quem o técnico tenha dado ordens para recuar, mas sim a de uma equipa que é forçada a fazê-lo por causa da sua incapacidade para ligar com o ataque (reforcei esta tese com dados na crónica analítica desse jogo, aqui). O primeiro golo do Borussia, por exemplo, antes de nascer da passividade de Saint Juste no acompanhamento a Guirassy, começa num passe feito por Simões em transição ofensiva para um local onde devia haver alguém mas onde só estava Schlotterbeck, já que os leões se tinham colocado todos atrás – só Gyökeres povoava aquela zona. Este fracasso na saída para o ataque, que já no Dragão permitira vagas sucessivas ao FC Porto, acaba por ser uma espécie de pescadinha de rabo na boca: a equipa baixa porque não consegue chegar à frente e não se chega à frente porque está demasiado baixa. E para onde a questão nos leva é para duas áreas de intervenção, uma de índole física e a outra tática. Será o cansaço a razão pela qual os jogadores do ataque passam a proteger-se, baixando para a linha dos médios e assim amputando a equipa das suas vias de saída? Será esta incapacidade de ligar com a frente fruto da fadiga, que leva os médios a decidir pior em momentos de transição, acumulando más entregas em segundas partes por isso mesmo depois passadas a correr atrás da bola? A única constante entre os dois últimos jogos é a posse de bola: os leões acabaram com 44 por cento contra o FC Porto e com 46 face ao Borussia Dortmund. Mais: ainda que o facto de ter defrontado duas vezes o Benfica e outras tantas o FC Porto possa ser atenuante, o Sporting teve menos bola do que os adversários em seis dos onze jogos feitos com Rui Borges. E isso só lhe sucedera duas vezes em 18 jogos com Ruben Amorim, que tinha também jogado duas vezes com os dragões e fizera quatro partidas de Liga dos Campeões – foi em Eindhoven e em casa com o Manchester City.
O problema tático não se reflete no recuo que a equipa adota nas segundas partes, por mais que esse seja um sintoma real (ainda que de outra coisa) e a ter em conta na avaliação global. O problema tático exerce as suas influências na forma como a equipa tende a abdicar da bola em todo o jogo. O problema tático não é o recuo das segundas partes, é o facto de a equipa jogar regra geral mais atrás do que fazia, com vários jogadores uma casa tática à frente do que lhes convém mais, o que os leva depois a procurar refúgio quando recolhem para as zonas de conforto. Matheus Reis e Quaresma eram defesas-centrais e passaram a laterais. Debast também era central e passou a médio. Catamo, Quenda e até Maxi (este só ontem) eram laterais ou alas e passaram a ser extremos. Bragança era médio e passou a ser segundo avançado. O que isto faz é transformar o Sporting numa equipa de tração atrás, que chega com pouca gente à frente e por isso não materializa em finalizações e golos o controlo que exerce nos momentos em que está mais fresca. Ontem, Harder destacou-se pelo espírito de luta. Só esteve 57 minutos em campo, mas foi ainda assim o jogador que mais duelos disputou (21). E foi, dos titulares, mas de longe, aquele que menos passes recebeu: 13, cinco dos quais progressivos, prova de que a equipa estava toda muito longe dele. Só Maxi, Quenda, Debast, Matheus Reis e Rui Silva com ele dialogaram, o que também demonstra outro problema, que é a predileção por ligar o jogo por fora e não por dentro. Para compararmos, basta ver que Guirassy, o ponta-de-lança do Borussia Dortmund, recebeu 35 passes. Mais, que destes 35 passes, 18 lhe chegaram dos seus três médios interiores (Gross, Brandt e Sabitzer), contra dois de Harder, ambos vindos de Debast, sendo que recebeu zero bolas de Trincão ou Simões.
É, por isso, nestes dois âmbitos que Rui Borges tem de atuar. E são estes os problemas em relação aos quais devia explicar-se. Porque é que a equipa está tão cansada? O que é que vai fazer para resolver isso? Porque é que a equipa chega com tão pouca gente à frente? E será que isso tem que ver com a recusa de ligar o jogo em combinações interiores, preferindo a segurança de sair e ligar por fora? Por mais que voltem a falar-lhe de Gyökeres, para ele poder dizer que não é médico, eram estas as perguntas a que gostava de ver o treinador do Sporting responder.
Realmente é um mistério este défice físico do Sporting que nem o rol anormal de lesões explica. É verdade que as maravilhas do "plantel restrito" obrigam a que não existam alternativas válidas, e que miúdos sejam convocados quando nem na equipa B têm capacidade para isso, para mais em jogos de 3 em 3 dias, como agora é usual. Também não percebo porque não se aproveitou o mercado de Janeiro (quando outros o fizeram através até de empréstimos), principalmente nas laterais. O Sporting é um mistério principalmente para os seus adeptos.
Cada vez mais se vê como Amorim foi um acto de gestão irresponsável que, por imensa sorte, resultou. Esta equipa técnica não esta a altura do desafio e isso é claro.