O ser e o parecer
O futebol, ao contrário da política, tem muitas vezes diferenças irreconciliáveis entre o ser e o parecer. Como se vê nas declarações de André Villas-Boas e Pinto da Costa. E no que falta ao FC Porto.

Palavras: 1384. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Uma das frases mais emblemáticas da política é a que nos diz que “em política, o que parece, é”. Ainda que aparentemente a sua autoria remonte a Salazar, o dito já foi repetido à esquerda e à direita. No futebol, pelo contrário, muitas vezes aquilo que parece não é – a diferença é que a bola ou entra ou não. Isso não quer dizer, porém, que os responsáveis pelos clubes não entrem nesse jogo das perceções que marca o dia-a-dia da atualidade política. É esse o plano em que está neste momento o FC Porto, onde André Villas-Boas e Jorge Nuno Pinto da Costa vão mantendo uma aparência de coabitação em nome do ideal comum, mas as declarações de um e do outro – e as dos que lhes são próximos – chutam para cima da outra tendência os males de que padece a equipa. Que são vastos, não são de hoje e dificilmente se resolverão já amanhã.
Vamos começar pelo que parece. Parece que o FC Porto contratou um treinador de futuro, um comunicador diferente e brilhante, além disso com visão e uma ideia. “[Martín Anselmi] compreendeu que o bom futebol, suportado nos valores inegociáveis do nosso ADN, serão a receita certa para continuarmos viciados em vitórias”, escreveu André Villas-Boas no editorial da última edição da revista Dragões. Parece que com as vendas de Nico González e Galeno, no final do mercado de Janeiro, será finalmente possível, como apontou também Villas-Boas, deixar para trás “o espectro da ruína financeira”, tendo “a sustentabilidade económica cada vez mais assegurada”. Mas, em contrapartida, também parece que, como escreveu Pinto da Costa em comunicado que soou a resposta, ou pelo menos a defesa da honra, tudo o que foi obtido agora só foi possível porque a administração anterior deixara um plantel fortíssimo no Dragão. “Investimos e valorizámos um plantel que permitiu à atual administração, na primeira metade da época, um encaixe de 167 milhões de euros”, notou o anterior presidente, como se houvesse mais duas janelas de marcado na segunda metade da temporada. E se Pinto da Costa não pode politicamente ser visto sequer perto de qualquer odor a insucesso, para que não deixe a ideia de estar a torcer contra as suas cores de maneira a de tal se aproveitar, o seu anterior diretor de comunicação, Francisco J. Marques, continua apostado em fazer passar a ideia de uma rotura com as vitórias consumada no dia em que os sócios elegeram Villas-Boas. “Meu querido FC Porto, tanto disseram que te iam salvar e afinal puseram-te de joelhos”, escreveu ele no Twitter. “Nunca pensei que fosse possível em tão pouco tempo destruir o que tanto demorou a construir”, prosseguiu.
Pois bem, isto é o que parece. Mas vamos ver o que é?
O que é, é que o FC Porto está, de facto, a viver um acelerado processo de descapitalização do plantel a cada ano que passa. Recorramos à avaliação feira pelo Transfermarkt (aqui). O grupo atual dos dragões está avaliado em 303 milhões de euros, menos 100 milhões do que valia, à data, aquele que foi campeão pela última vez, em 2022. E desses 303 milhões, 43 são de jogadores emprestados, que só pertencerão ao clube se este vier a acionar opções de compra caras. São avaliações subjetivas e, portanto, meras perceções, também? Verdade. Mas se olharmos para o plano dos resultados, fica difícil dizer que a decadência não existe ou que começou em Abril do ano passado, quando Pinto da Costa foi derrotado em eleições. O FC Porto fez uns extraordinários 91 pontos na Liga de 2022, um recorde no campeonato a 18 equipas, mas caiu para os 85 no segundo lugar de 2023, o ano do título do Benfica de Schmidt, e para os 72 em 2024, quando já só foi terceiro classificado. E, depois de ter sido o único dos quatro da frente a subir a pontuação na primeira volta da Liga atual face à primeira metade da edição anterior, as cinco jornadas consecutivas sem ganhar com que vai neste momento prejudicaram-lhe a média. Já está dois pontos abaixo da pontuação que tinha à 21ª jornada de 2024 e, mesmo que na altura seguisse a dez pontos do líder – agora está a oito –, ainda tinha pela frente o confronto direto que lhe permitiria anular parte dessa vantagem, coisa que desta vez já se esfumou. Mais: a manter a média atual vai acabar a Liga entre os 69 e os 70 pontos, mínimo histórico do clube na Liga a 18 equipas desde 2004/05, também uma época com três treinadores – Luigi Del Neri, Victor Fernández e José Couceiro.
Lá está a diferença entre o futebol e a política. Pode parecer muita coisa, mas o que é é o que é. Não há volta a dar a não ser criando condições para que venha a ser diferente. Os cerca de 100 milhões de euros ganhos entre saídas e entradas de jogadores nesta época permitirão ao FC Porto atacar o próximo mercado com uma capacidade financeira que não teve no Verão e em função da visão do treinador. E são várias as áreas de intervenção previsíveis. É claro que o mercado não é bem futebol, é uma área onde as perceções e as conveniências também são rainhas – basta ver a forma como Galeno e Nico González foram agora vendidos por um total de 65 milhões de euros acima do que era a sua avaliação – mas não fica fácil ao FC Porto fazer muito mais dinheiro em transferências no Verão a não ser que queira privar-se do talento emergente que é Rodrigo Mora, da referência segura que é Diogo Costa ou do líder em campo que pode ser Varela. Tudo más ideias... Transferir Pepê pode ser a melhor maneira de realizar capital, sobretudo se o jogador aceitar o mercado absurdo da Arábia Saudita, onde os dragões já colocaram Otávio e Galeno a troco de sacos pornográficos de dinheiro. E o que vier não será demais para preencher as necessidades de um treinador que aparentemente sabe bem o que quer, como se percebeu pela forma como o clube abdicou da possibilidade de ter Händel neste final de mercado de Janeiro. O que terá estado em causa nunca foi o valor do jogador, mas sim o seu perfil, demasiado próximo dos de Varela, Eustáquio, Tomás Pérez ou até Vasco Sousa, quando aquilo que se pedia era um médio com mais chegada à área.
A atividade do FC Porto no próximo mercado deve começar por se centrar no preenchimento de perfis para acabar por olhar para a questão da qualidade. Com Samu, Gül, Namaso e Mora não faltam avançados – ainda que me tenha confundido a opção de Anselmi no clássico, colocando Pepê na dupla da frente e Mora no trio de médios. William Gomes e Gonçalo Borges, dois extremos clássicos, podem servir para mudar estrategicamente na frente ou até para jogar a partir da posição de lateral/ala em jogos nos quais a ideia seja carregar em cima do bloco adversário. Presumindo que Fabio Vieira vai voltar ao Arsenal, o meio-campo está preenchido em termos de jogadores-âncora com Alan Varela e Tomás Pérez, em segundos médios com Eustáquio e Vasco Sousa, mas falta-lhe depois o terceiro jogador mais cerebral que era Nico. Esse médio, bem como um ala esquerdo de perfil diferente do que tem Francisco Moura e um par de defesas-centrais serão os principais alvos a contratar. Mesmo que o FC Porto exerça a opção (13,2 milhões de euros) por Nehuén Pérez e consiga igualmente ficar com Tiago Djaló (que está emprestado pela Juventus), mesmo que Otávio ganhe consistência e se olhe para Zé Pedro e nele se veja uma alternativa fiável para uma emergência, será preciso criar um grupo de pelo menos cinco – de preferência seis – jogadores que ali deem capacidade defensiva e início de organização atacante. E o problema, nesta posição, é que a questão não é só de número. É sobretudo de capacidade para fazer aquilo que quer o novo treinador.
O Porto tem uma situação mais complicada do que o Sporting quando esteve nesta situação. Porque o Sporting ia já no segundo jejum, passou por anos como os de Paulo Bento em que se festejavam segundo lugares (nada mais deprimente), uma direção que quase levou o clube à sua morte (Godinho Lopes), aquela farsa de Alcochete e o "golpe de Estado" que se seguiu, seguido de uma comissão de gestão "danosa" e uma série de más contratações e quartos lugares, que levou ao descrédito do clube e ao conformismo de muitos adeptos, com o que foi primeiro a propaganda da falta de dinheiro, depois o discurso de que o segundo lugar já é "bem bom", depois com a falta mesmo do dinheiro. O Porto não, embora tenha caído aos poucos, é mais difícil convencer os adeptos de que não estão à altura dos rivais e que provavelmente vão demorar a estar. Para o que dá, o trabalho nem tem sido mau, apenas não estamos habituados a este Porto e os portistas muito menos.