O vírus FIFA
A FIFA e a UEFA estão a fazer render ao máximo a galinha dos ovos de ouro e isso já se nota na forma como os jogadores vão cedendo. Mas os clubes não podem negar que têm responsabilidade na epidemia.
No sábado, o As e a Marca tinham primeiras páginas quase idênticas. Um contava que “medio Madrid está roto”, o outro deixava a foto de vários jogadores merengues, todos indisponíveis, e titulava “Un Madrid rotíssimo”. A indignação relacionava-se com as lesões de Camavinga e Vinicius Júnior nas seleções de França e do Brasil, o primeiro no ligamento lateral externo do joelho direito, o segundo com um problema muscular. No último mês, além de Courtois, Éder Militão, Ceballos e Guler, que já não puderam jogar o clássico com o FC Barcelona, entraram na enfermaria Tchouameni (fratura de stress), Mendy (sobrecarga), Kepa (adutor), Bellingham (ombro) e agora Camavinga e Vinicius. O tema começou a dominar as conversas, que sempre são já 18 lesões esta época, a afetar um total de 13 jogadores ao serviço de Ancelotti, mas a metade do país que não sofre pelo Real Madrid não se unia à campanha. Até ao Espanha-Geórgia de domingo e à rotura total do ligamento cruzado anterior do joelho direito de Gavi, que vai deixar o jovem do FC Barcelona fora de combate para os sete meses que restam da temporada, privando-o do Europeu e dos Jogos Olímpicos. Luís de la Fuente, o selecionador espanhol, ainda alegou que a coisa aconteceu na sequência de um choque, que ali não há um problema de sobrecarga, mas logo os cientistas lhe responderam que a incidência das lesões – até traumáticas – em jogo é dez vezes superior à verificada em treino e que, portanto, se os futebolistas jogam demasiado, lesionam-se muito mais. Se há coisa que deve ser entendida a propósito do futebol espanhol é que se Real Madrid e FC Barcelona se unem numa coisa, ela se torna assunto de interesse nacional. O vírus FIFA, do lado de lá da fronteira, por estes dias, é como uma gripe espanhola, fatalmente destinado a alastrar a todo o Mundo a não ser que se tomem já as medidas de contenção necessárias. A FIFPRO, o sindicato internacional dos futebolistas, anda há anos a alertar para este problema, a exigir que se limite a quantidade de semanas seguidas em que cada jogador sobe ao relvado de três em três dias, bem como a pedir a garantia de um período de férias de pelo menos 28 dias, e o mínimo de uma folga semanal, mas isso é cada vez mais incompatível com o sobrecarregar dos calendários que é imposto pelas exigências de constante visibilidade por parte dos patrocinadores e de captação de receita com mais e mais transmissões televisivas, de fases finais de seleções no final das épocas e de pré-eliminatórias de clubes no início. E atenção: a partir da próxima época, as coisas vão piorar, porque no novo formato da Liga dos Campeões um finalista deixa de fazer 13 para fazer um mínimo de 17 jogos e o novo Mundial de clubes aumentará de sete para 32 o número de participantes, envolvendo mais jogadores e em mais partidas. O El País de hoje traz números avassaladores. Até aos 20 anos, Vini Júnior fez 6.110 minutos como profissional, que são quatro vezes mais do que os 1.549 jogados por Ronaldinho Gaúcho nessa idade, no final da década de 90. Bellingham tem 14.445, um crescimento de 31 por cento face aos 10.989 de Rooney, outro inglês precoce o início do século. Gavi, que ainda tem 19 anos, feitos em Agosto, já disputou 9.470 minutos de jogo, mais do que os 8.449 de Xavi, o seu treinador, aos 20, quando era revelação do Barça. E nem é preciso ir buscar o caso de Pedri, que depois de uma temporada de 2020/21 avassaladora, com 72 jogos e 5.100 minutos de jogo, entre jogos do clube e das seleções A, olímpica e sub21, tem vindo a sofrer de lesões mais ou menos permanentes, que implicaram 371 dias de ausência e o impediram até de igualar esse total nas três épocas seguintes somadas (vai em 70 jogos). Pedri fez 18 anos a meio da época de 2020/21. Que abusaram dele e agora está a pagar a fatura parece evidente. Que a culpa deva ser assacada apenas à FIFA – ou à UEFA – já me parece mais retorcido. É claro que a guerra pelo controlo da distribuição da receita está a transportar a coisa para níveis impensáveis, mas cabe também aos clubes proteger os seus ativos – que são os jogadores – da depreciação, aceitando que a rotação é necessária para se continuar a competir em todos os patamares. E aqui ninguém pode clamar por inocência. Basta ver que o FC Barcelona, um dos queixosos, já acertou uma digressão aos Estados Unidos para a paragem de Natal da Liga Espanhola. Tinha necessidade? Não. Mas dá-lhe jeito o dinheiro.
A cunha de Bernardo. Bernardo Silva disse-o a brincar e, na verdade, dada a forma como lhe foi posta a questão, nem podia dizer outra coisa para não ser um desmancha-prazeres, aquele tipo com quem ninguém quer ir a uma festa. “Se puder, põe uma cunha para o João Neves ir para o Manchester City?”, perguntaram-lhe à saída da Gala da FPF, aparentemente a sério, o que já de si é sintomático de até onde impera a busca do soundbyte nas cada vez mais raras e limitadas ocasiões em que os repórteres têm perante eles os protagonistas. Sem medo do Ministério Público, certamente mais ocupado com outras escutas, o médio internacional deu uma gargalhada e, antes de se virar para abandonar o local, disse: “Se puder, claro que sim”. Dias antes, Fabrizio Romano, o primeiro jornalista convertido em fonte de informação por quase todos os meios de comunicação, a ponto de ser citado em notícias de mercado como se fosse dirigente de um clube de cuja validação dependem os negócios, tinha tweetado que o Benfica está renitente a deixar escapar a pérola mais recente da sua formação a não ser pela cláusula de rescisão, que são 120 milhões de euros. Percebe-se. Por um lado, a idade ainda tenra de João Neves, 19 anos e um total de 38 jogos na equipa principal, por outro o caráter aparentemente trabalhador e pacato do jogador, que também por isso foi bem acolhido até no grupo da seleção nacional, pode permitir aos encarnados gerir o caso com uma calma que seria difícil se ele estivesse tão louco por se pôr a andar daqui como estão os repórteres pela manchete da sua transferência. E isso permite ao Benfica gerir o caso com tranquilidade, o que lhe favorece o poder negocial. Antes que me perguntem, digo já duas coisas. A primeira é que João Neves é craque – e disso, entre outras coisas, falarei mais tarde, provavelmente ainda hoje, quando sair a edição desta semana do FDV Report, a avaliação individual dos jogadores neste primeiro terço de Liga. A segunda é que não vejo aqui nenhuma conspiração. Há, isso sim, uma clara confluência de interesses entre o jornalista que procura o soundbyte laudatório, a frase que preencha o ego da maior franja de potenciais clientes, de que vos falei aqui, e o clube que pretende fazer crescer o apetite do mercado pelo talento que vai criando. Depois, não me espantaria nada que, se um dia Guardiola lhe perguntar mesmo, Bernardo até recomende a contratação de João Neves, mas ele aqui foi só o meio de legitimação de uma vontade mútua. João Neves está a fazer uma Liga tremenda, mas se por um lado tem tudo a ganhar em ficar por cá pelo menos mais um ano, por outro não será tão fácil ao Benfica fazer com ele o que fez com Enzo Fernández, em virtude do fracasso na Champions. Quer isto dizer que não haverá negócio esta época? Não. Quer dizer que, além de não ser benéfico, será mais difícil. Mas depois há a terceira parte disto tudo, que é Jorge Mendes, empresário que abre portas e cuja relação com os grandes portugueses vai flutuando à medida de circunstâncias estratégicas. É da articulação de todos estes fatores, bem mais do que de uma potencial cunha de Bernardo, que depende o futuro imediato de João Neves.
Mendes e este Rio Ave grego. Por falar em Mendes: o período competitivamente mais bem conseguido no passado recente do Rio Ave foi o da parceria com a Gestifute de Jorge Mendes e da presença de Miguel Ribeiro como diretor-geral do clube. O dirigente saiu em 2018, depois da conquista do quinto lugar na Liga e da qualificação para as pré-eliminatórias da Liga Europa, seguindo para o FC Famalicão, onde se fez primeiro diretor-geral e depois presidente de uma SAD que, através da entrada de um investidor externo, o israelita Idan Ofer, não só subiu de escalão como tem andado ali a cheirar os lugares europeus e vai mostrando obra feita até ao nível das infraestruturas e da formação – é o campeão nacional de sub19, por exemplo. Ofer, que é um dos acionistas minoritários do Atlético Madrid, chegou a Portugal através de Jorge Mendes, que tem excelentes relações com o clube de Miguel Ángel Gil. Ora agora, Alexandrina Cruz, a presidente do Rio Ave – e mulher de Miguel Ribeiro – revelou à TSF que foi também por intermédio de Mendes que o Rio Ave chegou ao grego Evangelos Marinakis, milionário que é dono do Olympiakos e do Nottingham Forest e que, depois de os sócios vila-condenses terem aprovado a transformação da SDUQ em SAD, tem via aberta para entrar como dono do futebol do clube. Para o Rio Ave, trata-se de assegurar a sobrevivência, de pagar dívidas e de provavelmente impedir a queda nos escalões inferiores onde vegetava o FC Famalicão antes de lá entrar Ofer. Jorge Mendes desempenha assim um papel relevante na salvação dos dois emblemas e ainda traz capital de confiança para o futebol português – pode nem se gostar de um nem do outro, mas não são investidores de fachada, dos que desaparecem sem deixar rasto. Mas isto continua a parecer-me tudo muito perigoso. E não, antes que perguntem, não é por achar que pode haver combinação de resultados. É nos negócios que a coisa não passa o teste do algodão.