E agora, Portugal?
Fechada a qualificação com uma série de recordes – vitórias consecutivas, total de golos marcados, balizas invioladas... – a questão que se coloca é “qual é o estatuto da seleção no contexto europeu”?
Roberto Martínez definiu muito bem a coisa quando disse que Portugal não é favorito mas é candidato a ganhar o próximo Campeonato da Europa. Porque favorito, à partida, haveria um, dois ou três no máximo, e candidatos há vários. É mais aí que estamos neste momento: o Europeu de 2024 tem, a meu ver, oito candidatos à vitória na final de Berlim – e um deles, no caso a Itália, nem sequer está ainda apurado. Há equipas que são candidatas por estatuto, por mais débeis que possam parecer, como é o caso da Alemanha, que vai organizar a competição, e pode ser o de Itália, que falhou a presença nos dois últimos Mundiais, mas é a campeã de 2020 e parece ter renascido com a entrada de Luciano Spalletti. Depois há equipas que são potências permanentes, que têm assento numa espécie de Conselho de Segurança da UEFA, que são a França, a Espanha e a Inglaterra. Não se faz uma lista de candidatos a um troféu sem as incluir. Há equipas que, num ápice, passam de mega-potências a inutilidades totais e vice-versa – e aqui penso sobretudo na Holanda. E há equipas que se impõem neste lote à conta da consistência que são capazes de meter na qualidade, como é o caso de Portugal ou da Bélgica. Na fase de qualificação, é verdade, Portugal não teve grandes desafios – mas o que recusamos ver, e que vos digo mais à frente, é que os outros também não, e mesmo assim alguns deles claudicaram aqui ou acolá. A questão é que, mesmo sem ter necessitado de ser brilhante, a equipa nacional foi sempre sólida. Desinspirada em Reiquejavique, teve de sofrer em Bratislava, mas foi segura e competitiva na receção à Bósnia e avassaladora na visita a Zenica ou nos dois jogos com o Luxemburgo, surpreendente terceiro. Um Europeu não é uma prova de regularidade, uma maratona em que se imponham aqueles que menos vezes falham. É uma competição implacável na qual ainda é admitido o direito ao erro durante a fase de grupos mas onde, depois, tudo se resolve em 90 ou, no máximo, 120 minutos com desempate por penaltis. A vitória não sorrirá necessariamente à melhor equipa e basta ver o que sucedeu com a seleção portuguesa de 2016 para o entender: não era a equipa mais forte, mas acabou por ser a que melhor jogou com as regras da competição, entendendo que o que se lhe pedia não era que fosse brilhante mas sim que afastasse os obstáculos, um após o outro. O que esta fase de qualificação nos diz acerca da equipa que Martínez fez com um plantel ao mesmo tempo vasto e limitado foi que ela tem a profundidade suficiente para reagir a um dia mau: a seleção não conta com muitos jogadores, mas ao mesmo tempo não há um que seja visto como absolutamente imprescindível. Se não houver Bruno Fernandes, que foi o mais influente desta qualificação, nada nos diz que Otávio e Vitinha não podem fazer o meio-campo. Se não houver Ronaldo entra Ramos. Se não houver Palhinha joga Danilo. Se não tiver Bernardo, Félix pode fazer o que ele faz. Se não houver Cancelo, Dalot assegurou que subiu o nível e estará à altura. Se faltar um dos centrais tem sempre mais dois – três se houver Pepe – no patamar de excelência exigido. Portugal já não tem a estrela estratosférica que tinha quando Ronaldo lutava pelo top mundial, em 2014, 2016 ou 2018, mas tem a profundidade que nunca teve – e não deixa de ser curioso que a tenha atingido quando teve o selecionador mais conservador nas suas escolhas. E da mesma forma que pode deixar o grupo vulnerável, porque uma onda de lesões forçará a entrada no lote de selecionáveis de elementos que a ele são totalmente estranhos, esse conservadorismo, que transformou o grupo no que de mais próximo pode haver do plantel fixo de um clube, pode agora facilitar a parte que falta na tarefa do treinador: a consolidação tática que leve a que a busca da diversidade que Martínez tanto apregoa não deixe a equipa sem um plano.
Foi um passeio. Face ao inédito pleno de dez vitórias em dez jogos com que Portugal fechou a sua fase de qualificação, aquilo que mais se ouve e lê é que a seleção não fez mais do que a sua obrigação, porque o grupo em que estava era fraco. E se por um lado isso não é desculpa – já diz a velha máxima, “só podes derrotar o adversário que tens pela frente” –, por outro é mentira. Quando ainda falta jogar 14 dos 230 jogos desta fase de apuramento, só duas equipas mantêm um pleno de sucessos: Portugal e a França, a quem falta uma visita à Grécia, amanhã, para carimbar o feito. A Espanha perdeu na Escócia, 34ª colocada no Ranking FIFA hoje e 40ª à data do sorteio, em Outubro de 2022. A Inglaterra, que ainda defrontará hoje a Macedónia em Skopje, empatou em Wroclaw com a Ucrânia, 22ª do ranking atual e 27ª no momento em que se definiram os grupos. A Croácia, semi-finalista do último Mundial, nem está apurada ainda, pois perdeu com a Turquia (45ª do ranking há um ano e 38ª hoje) e não ganhou nenhum dos dois jogos com Gales (19ª seleção do Mundo hoje e 28ª à data do sorteio). A Bélgica cedeu dois empates, nos desafios com a Suécia (que subiu dois lugares durante a qualificação, do 25º ao 23º) e a Áustria (que passou de 34º para 25º). Se definirmos que o grau de dificuldade de um grupo se define pela categoria da sua terceira melhor equipa – uma vez que eram duas as apuradas – e analisarmos os dez lotes presentes à luz do que o ranking nos dizia aquando do sorteio, o J, de Portugal, não era dos que fechava primeiro os candidatos. Essa distinção cabia ao Grupos C e F, os únicos que encerravam este núcleo antes do 40º posto, aquele com Inglaterra, Itália e Ucrânia, 27ª nação do ranking, e este com Bélgica, Suécia e Áustria, 34ª. Mas depois do J, de Portugal, onde a terceira nação era a Bósnia-Herzegovina, em 58º lugar, ainda apareciam o H (Dinamarca, Finlândia e Irlanda do Norte, em 59º), o E (Polónia, Chéquia e Albânia, em 66º), o G (Sérvia, Hungria e Montenegro, em 69º) e o I (Suíça, Roménia e Israel, em 76º). É certo que só um cabeça-de-série teve a vida mais facilitada em termos da segunda candidata que lhe surgiu pela frente, que foi a Dinamarca, cujo adversário mais credenciado era a Finlândia (56ª do ranking), mas muito desta noção de facilidade advém do que se viu na fase de qualificação. Portugal não se impôs a um grupo de adversários fracos. Os adversários é que se tornaram, na perceção global, fracos, porque estiveram num grupo cujo cabeça-de-série ganhou todos os jogos.
O problema dos 14-0. Este Europeu teve excelentes surpresas, como a Albânia, já apurada e em princípio como primeira de um grupo que tinha a República Checa e a Polónia, a Escócia, que afastou a Noruega de Haaland e Odegaard, ou até o Luxemburgo, terceiro do nosso grupo à frente da Islândia e da Bósnia-Herzegovina e ainda bem vivo no play-off que aí vem. Mas há seleções que regrediram para um nível quase indefensável. O Liechtenstein de hoje parece jogar muito menos do que aquele que na qualificação do Mundial de 2006 impôs um histórico empate a Portugal, mas manteve pelo menos a dignidade nas derrotas, com 28 golos sofridos em dez jogos. Foi, com San Marino, Malta, Gibraltar e a surpresa negativa de Chipre uma das equipas que perderam todos os seus desafios. O que não é, em si, um problema. Problema real são os 14-0 com que a França aviou a equipa do rochedo que separa a Europa de África, a única que não fez um golo em toda a fase de qualificação. Sou, por princípio, pelo direito a todas as nações participarem nestas provas, porque acho que é a jogar com os grandes que aos seus jogadores mais jovens se apresenta o estímulo correto para crescerem. Mas há casos em que isso se torna cada vez mais indefensável. Aqueles 14-0 podem ter sido uma festa para quem foi ao estádio ou celebrou cada golo na TV mas a mim deixam-me extremamente triste. Triste por quem está no lado errado do resultado e triste porque são argumentos para a tese da elitização da competição que é o exato contrário do que devemos defender para o desporto.