O racional de uma transferência
Mateus Fernandes vai sair do Sporting antes de ser titular e, possivelmente, por um valor abaixo do que valeria se o clube esperasse. Pode ser um erro, mas é uma forma de gerir que tem as suas razões.
Palavras: 1400. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram)
A transferência, que em princípio se consumará esta semana, de Mateus Fernandes, do Sporting para o Southampton, por 15 milhões de euros – e depois se verá quanto mais em extras ou percentagem de mais-valias – é criticada por uns, que não gostam de ver os leões a abdicar de jovens valores da sua formação para trazer gente de fora, elogiada por outros, que nela veem a possibilidade de Varandas poder ser mais duro nas negociações para as eventuais saídas de titulares, eventualmente exigindo as cláusulas de rescisão, e ainda vilipendiada por um terceiro grupo, que a olha como um sintoma de que os leões estão no carrossel de Jorge Mendes, o mesmo carrossel que criticavam quando lá entrou o Benfica. Não subscrevo nenhuma destas teses. Não creio que estejamos a assistir a um desperdício de talento sequer próximo do feito pelo Benfica com Bernardo Silva, mas tenho pena que Mateus se vá tão cedo e que se vá pelas mesmas razões. É que, por mais expectativas que o belíssimo ano que ele fez no Estoril me tivessem causado, entendo a ‘realpolitik’ que manda abdicar da que, para já, era apenas a quarta opção do treinador para duas posições. E não, não é só por uma questão de aproveitamento imediato, de falta de visão a médio e longo prazo. É porque se o jogador passar agora um ano sem ter frequência competitiva pode mesmo vir a ser-lhe difícil mostrar aquilo que dele se espera no tal médio e longo prazo.
Vamos ver as coisas como elas são. Os titulares do Sporting para o meio-campo são, na cabeça de Rúben Amorim, Hjulmand e Morita. A primeira alternativa é Bragança, que aparece, como fez na Choupana, sem que se note perda de qualidade. Mateus surgia ali como um segundo suplente. Poderia vir a fazer falta? Certamente que sim. Basta lembrar que, na época passada, com Morita na Taça da Ásia e alguma desconfiança acerca de Bragança, que vinha de uma lesão grave, Amorim chegou a ter de desviar para lá Pedro Gonçalves e o Sporting foi a correr contratar Koindredi, para ter pernas de reserva. Mas essa foi uma situação-limite, que ninguém sabe se se repetirá – e que desejavelmente não sucederá. Os teóricos da rotatividade vêm logo dizer que não, que com campeonato e Liga dos Campeões quatro opções para dois lugares não são demais – e não são, de facto –, mas pensar as coisas assim é ignorar que, por mais que admita rodar, nenhum treinador mexe com tanta facilidade num setor fulcral da equipa a ponto de distribuir minutos de forma mais ou menos igualitária por todos. E menos ainda o faz um treinador que, como Amorim, é um crente devoto nas vantagens de um plantel curto, para ter toda a gente focada e a trabalhar bem, com a cabeça no ganho da titularidade. O que restaria, então, a Mateus Fernandes se viesse a ficar em Alvalade? Jogar a ponta final de alguns jogos? Alinhar de início noutros, mas os de exigência menor? E isso seria bom para quem?
Poderia vir a ser bom, no médio e longo prazo, para o Sporting, que se o jogador crescesse na mesma, como até admito que aconteceria, até poderia vir a tirar dele rendimento desportivo e, futuramente, financeiro, acima dos 15 milhões que se prepara para faturar. Mas iria isso acontecer depois de ele enfrentar um ano a jogar com pouca frequência? Continuaria ele a trabalhar com o mesmo denodo? Ou esse ano seria um entrave ao seu crescimento como jogador e, no tal médio e longo prazo, à hipótese de o clube vir a rentabilizá-lo? Na verdade, ninguém pode garantir uma coisa ou a outra. Será sempre uma questão de aposta. Deveria então o treinador ser “forçado” a apostar nos jogadores jovens da casa, de maneira a poderem vir a gerar mais-valias mais interessantes no médio e longo prazo? E até que ponto é que isso seria um entrave a um fator fundamental, não só na criação dessas mais-valias como mesmo na entrada em provas que valem tanto como uma super-transferência, como a Liga dos Campeões? É que, tal como me esforcei para explicar na Entrelinhas do último sábado, que foi escrita antes de Amorim ter levantado a possibilidade de saída de Mateus, os clubes portugueses não podem menosprezar a criação de mais-valias no mercado de transferências. Por um lado, porque o futebol em Portugal é uma atividade deficitária – e essas mais-valias ou receitas extraordinárias são o que garante que os clubes continuem a operar. Por outro, porque não se pode pensar a indústria na lógica exclusiva da manutenção dos valores da casa, porque a tudo isso há a somar a pressão do mercado e até dos jogadores e dos seus agentes. Não terá sido o caso de Mateus Fernandes, que ainda não tem o estatuto suficiente para tal, mas sê-lo-á nos de maior visibilidade deste plantel, como Gonçalo Inácio (formado em Alcochete), Gyökeres, Hjulmand ou até Diomande, que de algum lado vieram.
Se o Sporting resistir até ao fecho do mercado sem vender um destes jogadores, isso ficará a dever-se a um par de razões. Primeiro, o facto de já ter feito as mais-valias de que precisa para recusar propostas abaixo do que entende que é o valor de mercado dos seus titulares. E, sim, isso pode ser visto como uma forma de gestão imediatista, porque se opta por vender o futuro só para garantir o presente. Mas, segundo, também o ter convencido os próprios jogadores de que não podem sair só porque querem, quando não apareceram propostas tão boas como o clube acha que eles justificariam. E isso consegue-se sobretudo mostrando-lhe perspetivas de poderem vir a ganhar troféus e de, depois, saírem para sítios melhores ou com um estatuto superior àquele de que gozam agora. A transferência de Mateus Fernandes não é, por isso, um sintoma tão evidente de navegação à vista, de sacrifício do futuro em função do imediato – mas isso nem a saída de Bernardo Silva do Benfica de Jesus, esse guru do momento como definidor de política desportiva, o foi. Da mesma forma que não é possível garantir hoje que jogador vai ser Mateus Fernandes daqui por dez anos, era ainda mais complicado adivinhar o jogador que veio a ser Bernardo Silva, em 2014, quando ele saiu para o AS Mónaco. Mesmo não se concordando com a polémica frase do treinador, que disse que os miúdos da formação teriam de “nascer dez vezes” para justificarem a aposta num contexto competitivo como era o do Benfica de então, alguém estaria em condições de garantir nessa altura que Bernardo iria ser um dos médios de referência do futebol europeu e jogador fulcral para um treinador como Guardiola? Ou, até, que viria a ser o jogador que foi se continuasse na sombra de Gaitán, então o titular da posição que ele ocupava?
Bernardo deixou o Benfica a três dias de completar os 20 anos que Mateus também fez no mês passado, mas fê-lo com apenas oito minutos jogados na Liga portuguesa. Meses depois, o AS Mónaco estava a pagar 15,7 milhões de euros por ele, acabando por torná-lo um dos exemplos do “carrossel-Mendes”, que levou vários jovens da Luz por 15 milhões. Uns, como Hélder Costa, Ivan Cavaleiro ou João Carvalho, nunca atingiram na “vida real” a valorização de tabela. Outros, como Bernardo ou João Cancelo, aproveitaram a oportunidade e suplantaram-na largamente. Porque, sim, há sempre um risco associado à atividade de gerir um plantel ou uma carreira. E, não, ninguém pode garantir que, se tivesse ficado na Luz para ser tetracampeão, Bernardo viria a ter a oportunidade de se tornar a referência que hoje é. Com a mesma idade, Mateus Fernandes tem mais de 30 jogos na Liga e parece hoje até mais preparado do que estava Bernardo com a idade dele – outra coisa é definir se tem mais ou menos talento potencial. Mas o que é importante entendermos é que isso não lhe garante nem lhe impede nada e que tudo o que ele vier a ser depende das realidades que for enfrentando. E, para já, ele vai dar o passo que tem de dar para agarrar o futuro.
Neste negócio faz-me confusão que o Sporting não tenha garantido uma percentagem de futura venda robusta. Veja se o caso de Famalicão. É este aspecto que, para mim, torna este um mau negócio.
Concordo com tudo. Mas creio que o Amorim estava a treinar o Mateus para ser uma alternativa ao Pote no ataque (avançado interior esquerdo). E aí jogaria, em teoria, mais algum tempo pois seriam três posições possíveis em vez de 2.