O que é o Famalicão?
A saída de Luiz Júnior para o Villarreal CF, por 12 milhões de euros, leva à pergunta: o que é o FC Famalicão? É mais do que um projeto de influência de Jorge Mendes. Mas é também isso.
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Olha-se para o FC Famalicão e as “red flags”, os sintomas que os adeptos mais renitentes menos gostam de ver nos seus clubes, estão lá todas, bem à vista. Há um acionista exterior que é maioritário. Ainda por cima, esse acionista, o israelita Idan Ofer, chegou pela mão de Jorge Mendes, que já era das suas relações, provavelmente por ele estar simultaneamente no tecido societário do Atlético Madrid, clube conhecido, entre muitas outras coisas, por ter integrado o famoso “carrossel” do super-agente português. No plantel apareceram bastantes jogadores vindos de outros clubes que também andavam nesse “carrossel”, como o Valência CF de Peter Lim ou o Wolverhampton WFC da Fosun. E, no entanto, a coisa funcionou: o FC Famalicão está uns bons patamares competitivos acima do local em que se encontrava quando este trajeto se iniciou, na II Liga, construiu património desportivo, foi campeão nacional de sub19 e todos os anos lucra milhões na balança de transferências, começando a tornar-se firme a convicção de que é difícil ir buscar ali talento. Afinal de contas, qual é o segredo que transforma o clube minhoto em mais do que um “side-kick” de Mendes? E até que ponto é que isso pode ser replicado pelo Rio Ave?
Os 12 milhões de euros ontem pagos pelo Villarreal CF por Luiz Júnior, o ainda jovem (23 anos) guarda-redes brasileiro que o FC Famalicão recrutou nos paulistas do Mirassol, em 2019, para jogar na sua equipa de juniores, não atraíram as acusações de “mendilhões” com que a vigilante tropa das redes sociais sempre cataloga as operações feitas por clubes próximos do dono da Gestifute. Porque o amplo sucesso de muitos dos jogadores que ali passaram, com Ugarte e Pedro Gonçalves à cabeça, levou à instituição da ideia de que dali saem craques a sério e até faz com que sempre que se fale na hipótese de um jogador do FC Famalicão interessar a um grande – e ultimamente muito se falou tanto de Gustavo Sá como de Zaydou, por exemplo – a conclusão generalizada seja a de que não há dinheiro no futebol português para ir lá buscá-los. E o enraizamento desta ideia é o melhor que pode acontecer a um projeto de clube de classe média antes de ele poder pensar em dar o salto. Foi um pouco o que se viu no SC Braga de António Salvador antes de se aproximar dos grandes na ambição de lutar por troféus. E é, em grande medida, o que tem faltado ao Vitória SC, que também vai gerando talento mas o perde com muito mais ligeireza.
E, contudo, o início do FC Famalicão de Idan Ofer tresandava a clube-parqueamento, a etapa de descanso na volta mais larga que era a do mercado global. Aquele primeiro ano de I Liga, com João Pedro Sousa à frente da equipa e já com Miguel Ribeiro aos comandos da SAD, oferecia razões mais que suficientes para se espalhar o ceticismo. O FC Famalicão recebeu Pedro Gonçalves e Roderick Miranda dos Wolves, Gustavo Assunção, Nicolás Schiapacasse e Nehuén Pérez (esse mesmo, o que o FC Porto agora quer) do Atlético Madrid, Uros Racic e Alex Centelles do Valência CF e ainda Diogo Gonçalves e Guga do Benfica, que por aqueles tempos fazia parte do circuito com exclusividade nacional. Era o período da “parceria”, conforme definida por Luís Filipe Vieira – o que torna ainda mais peculiar que os encarnados sejam o único dos grandes portugueses que não foi abastecer-se a Famalicão nestes anos. Essa primeira época foi fulcral na definição do projeto: antes de ter acabado o campeonato em sexto lugar, falhando a Europa por uma unha negra, o FC Famalicão foi a equipa-sensação da Liga – ganhou ao Sporting em Alvalade, em Setembro, e foi ao Dragão defrontar o FC Porto, já em Outubro, isolado na frente da tabela, por exemplo. E ainda que em 2020/21 tenham voltado a chegar uma camioneta de jogadores dos suspeitos do costume – Leonardo Campana, Bruno Jordão e Rúben Vinagre dos Wolves, Zlobyn do Benfica, Gil Dias do AS Mónaco... – o foco passou a estar nos que saíam e na receita que isso permitia atingir.
É certo que o clube nunca repetiu aquele sexto lugar. Foi nono em 2021, oitavo em 2022, 2023 e 2024. De caminho, transferiu Pedro Gonçalves e Ugarte para o Sporting, Toni Martínez, Ivan Jaime e Otávio para o FC Porto. Dos cinco, só Martínez ficou aquém dos dez milhões de euros agora também superados na saída de Luiz Júnior. Em todos, o FC Famalicão manteve parte dos direitos económicos – e neste momento só Ugarte já não é pelo menos um pouquinho do clube. Para se enquadrar melhor o que isto significa é preciso ver que, em toda a sua história, o Vitória SC, por exemplo, só transferiu um jogador acima da fasquia dos dez milhões, que foi Edmond Tapsoba, para o Leverkusen. E que, além das feitas pelos três grandes, pelo SC Braga, pelo Vitória SC e pelo FC Famalicão, só houve mais três operações na Liga Portuguesa a valer pelo menos dez milhões de euros: Mujica (10 milhões, do FC Arouca para o Al Sadd), Nakajima (35 milhões, na saída, bem estranha, por sinal, do Portimonense para o Al Duhail) e Beto (15 milhões, também do Portimonense para a Udinese). Ora é aqui que a coisa se torna difícil de explicar. O trabalho feito em Famalicão tem sido excelente, tanto pela equipa comandada por Miguel Ribeiro como pelos treinadores que por lá vão passando, um lote no qual Armando Evangelista faz excelente figura. Mas os resultados, só por si, mesmo sendo excelentes, não justificam tanto sucesso no mercado como aquele que o clube tem tido – e que, é preciso que se diga, os jogadores dali saídos têm depois justificado. E é aqui que a influência do agente mais poderoso do Mundo pode ser uma grande ajuda.
Não há um universo contra-factual, pelo que nunca ninguém poderá responder à pergunta que muitos de vós farão: sem Mendes, conseguiria o FC Famalicão fazer o que já fez? Tal como, antes do tempo, ninguém pode responder a outra, que muitos começaram a colocar quando viram que o processo está a repetir-se no Rio Ave. Também ali, há um treinador competente – Luís Freire. Também ali, chegou um acionista maioritário das relações do dono da Gestifute – Evangelos Marinakis, dono do Nottingham Forest, o clube que substituiu os Wolves no topo da preferência de Mendes na Premier League a partir do momento em que a Fosun fechou a torneira e onde, por sinal, também foi parar o treinador da sua predileção, que é Nuno Espírito Santo. Também ali, a liderança da SAD está nas mãos de uma pessoa da confiança do agente, no caso Alexandrina Cruz, a esposa de Miguel Ribeiro. Há, portanto, condições para que o Rio Ave faça um percurso semelhante e igualmente meritório – e já lá chegaram, este ano, três jogadores vindos do Forest e dois do Olympiakos, do mesmo dono. O que o futuro nos dirá é se o mercado consegue absorver o produto de duas fábricas concorrentes na mesma medida. E disso, francamente, já tenho muito mais dúvidas.
Bom artigo. Mas não tenho a certeza que o sucesso dos sub-19, tal como a aposta no futebol feminino (que eu acrescento), se possam atribuir ao contexto descrito.
Apesar de, como adepto, me incomodar este import-export de jogadores com o propósito de carrear comissões chorudas para o agente referido, para o futebol português é bom ter clubes/Sad
SAD de média dimensão como o Famalicão.
Independentemente das influências, o Famalicão também confirma que há clubes e dirigentes que negoceiam melhor do que outros e que têm um scouting mais competente. E é isso que pode distinguir este projecto do do Rio Ave. Veremos.