O futebol dos guarda-livros
João Félix sai em definitivo do Atlético Madrid e podemos ver nisso o fim das grilhetas na sua carreira. Isso dependerá dele. O que a transferência nos mostra é a tendência contabilística do jogo.
Palavras: 1407. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu canal de Telegram)
É normal que, em Portugal, as notícias acerca da transferência de João Félix para o Chelsea, onde vai beneficiar de um treinador capaz de entrar em sintonia com o futebol que melhor lhe serve, motivem sobretudo reações focadas na carreira do jogador. O facto de, aos 24 anos, Félix ir para Londres sem ser por empréstimo pode significar o fim da relação conflituosa (pelo menos no plano das ideias) que ele foi mantendo com Simeone e o “Cholismo” enquanto foi durando a sua ligação ao Atlético Madrid e isso é naturalmente motivo de grande expectativa para quem ainda crê que ele possa vir a ser importante, por exemplo, no contexto da seleção nacional. Mas as camadas presentes nesta transferência são tantas que a colocam bastante para lá de um renascimento da carreira do jogador. Muito por causa dos efeitos das PSR (Profit and Sustainability Rules), o fair-play financeiro próprio da Premier League, da retração que elas causaram no mercado internacional e da loucura que tem sido a construção do plantel do Chelsea, com dezenas de opções e a necessidade de descartar boa parte delas, esta será uma transferência emblemática da nova ordem do futebol mundial, um futebol onde o que é verdadeiramente importante é a capacidade para fazer tudo ficar bonitinho nos livros onde se escreve a contabilidade.
Mas comecemos por nos centrar nos efeitos da mudança na carreira do jogador. Não acho, de todo, que a responsabilidade pela estagnação e até alguma retração na carreira de João Félix depois daqueles seis meses com Bruno Lage no Benfica seja “culpa” de Simeone. Claro que alguma responsabilidade o treinador terá, que se é ele que lidera a equipa e não consegue rentabilizar o maior investimento que esta fez, já debaixo das suas ordens, é porque está a falhar. O que rejeito depois é que esse falhanço se deva ao alegado “retrogradismo” tático de Simeone. Isto é, se Félix falhou no Atlético Madrid, não é porque o seu futebol seja poesia pura entregue nas mãos de um treinador que é adepto do trabalho de martelo pneumático. Simeone falhou porque não rentabilizou Félix, Félix falhou porque nunca conseguiu fazer o que o treinador queria – e não, não foi por razões “filosóficas” nem porque no futebol de hoje não caibam os artistas. Félix saiu debaixo do jugo de Simeone para jogar pelo Chelsea com Graham Potter e depois Frank Lampard, fez quatro golos e ganhou quatro jogos em 20. Depois, voltou a sair debaixo do jugo de Simeone para jogar no FC Barcelona de Xavi Hernández, onde nove das suas últimas dez utilizações foram como suplente, a ponto de nem Roberto Martínez, admirador confesso, que anteriormente o convocara para lhe “dar carinho”, lhe ter dado um papel de titular na seleção nacional. Já será necessária uma dose enorme de boa-vontade para defender que o rendimento no Chelsea e no FC Barcelona se deveria ainda a Simeone, aos efeitos psicológicos das noites mal dormidas a saber que mais cedo ou mais tarde lá teria de se reencontrar com o algoz e com as suas exigência de futebol de partir pedra, mas agora até esse medo sai de cena.
O que está em cima da mesa é uma transferência em definitivo para um Chelsea que sofre um processo de reconstrução debaixo das ordens de Enzo Maresca, mais um antigo adjunto de Pep Guardiola – como Arteta e até certo ponto Ten Hag, que andou pelas reservas do Bayern quando o catalão liderava a equipa principal – a dar cartas na Premier League. As ideias do treinador não serão seguramente um entrave à afirmação de Félix, os pesadelos com Simeone também não, mas há um fator a concorrer ao posto de potencial ameaça: a confusão que está a ser a formação da equipa do Chelsea. Desde a cessão do clube ao consórcio liderado por Todd Boehly, o Chelsea tem gasto como ninguém no mercado. Foram 630 milhões de euros em 2022/23, mais 464 milhões em 2023/24 e, se já contarmos os 50 milhões que os londrinos se preparam para pagar ao Atlético por 70 por cento do passe de Félix, mais 240 milhões esta época. São 1.300 milhões de euros em três anos. É claro que tem havido vendas – e a última até aqui, ligada à chegada de Félix, é a de Connor Gallagher para o Atlético Madrid. Ainda assim, estamos a falar de um total em torno dos 500 milhões de euros de jogadores cedidos. E a dúvida que se coloca logo à partida é simples: como é que se enquadra isto nas regras de lucro e sustentabilidade da Premier League, as tais regras que motivaram a retração global de um mercado internacional que se move à velocidade dos clubes ingleses? O segredo tem sido a engenharia financeira que também é, em grande parte, a verdadeira motivação para que entre Félix e saia Gallagher.
Muito se falou dos contratos de longo prazo feitos pelo Chelsea com os jogadores que adquire, de maneira a poder ir espalhando os valores de investimento por muitos anos. Félix vai assinar por seis anos – o que na prática significa que a sua aquisição custará menos de dez milhões ao ano, valores aos quais depois é preciso somar os salários, como é evidente. Enzo Fernández custou 121 milhões mas assinou até 2032. Mudryk foi contratado por 70 milhões e assinou até 2031, ano em que também expira a ligação contratual de Caicedo, contratado por 116 milhões. Inteligência? É mais esperteza do que outra coisa. O problema é que nem com estes contratos de longa duração o Chelsea está a conseguir ter as contas certas – e este ano a pressão já não está apenas na necessidade de vender mas também de vender gente da casa, de maneira a que as mais-valias sejam superiores, pois aos valores das vendas não se abatem amortizações. É por isso que sai Gallagher, formado no clube. Foi por isso que saiu Lewis Hall, formado no clube. Feitas as contas, se o Chelsea comprar 70 por cento do passe de Félix por 50 milhões (menos de dez milhões por cada ano de contrato) e vender o passe de Gallagher por 40, está a meter mais de 30 milhões de lucro na folha das contas para este ano. E, como pode ver-se na simples consulta ao plantel debaixo das ordens de Maresca, o que mais ali interessa é este ano. É sempre o ano seguinte, mesmo que seja possível olhar para o que tem vindo a ser feito, para os tais contratos de longuíssima duração, e defender que não, que se está a gerir a pensar no futuro.
Isso até seria defensável se não se olhasse para o plantel, já expurgado dos jogadores que o Chelsea conseguiu colocar e não se descobrissem lá 42 jogadores. Seis desses 42 são guarda-redes, três dos quais (Sánchez, Jorgensen e Petrovic) chegaram no último ano por um total combinado acima dos 60 milhões de euros e têm contrato pelo menos até 2030. 25 dos 42 jogadores têm contrato por pelo menos mais cinco anos, o que até poderia deixar os adeptos descansados, por indicar que durante algum tempo não seria necessário pensar em gastar no mercado, mas a questão é que entre eles estão vários que não contam para Maresca, como Deivid Washington, Datro Fofana, Carney Chukwuemeka ou Cesare Casadei. Só nestes quatro estão investidos 60 milhões de euros. Os ingleses andam preocupados com Raheem Sterling, um atacante internacional por quem o Chelsea pagou 56 milhões de euros há dois anos e que não figurou sequer nas escolhas do treinador para a primeira jornada, aparentemente porque se pensa sobretudo na sua venda, mas Sterling é apenas a face visível da extravagância de um plantel em que, para as três posições do ataque, concorrem neste momento 14 nomes, dos quais só Broja e Lukaku não foram já contratados pelos novos donos – que chegaram em Maio de 2022... Nesses 12 contratados pela nova gerência foi investido um total de 490 milhões de euros. E com uma nuance: é que ainda falta o ponta-de-lança, que se diz pode vir a ser Victor Osimhen. Assim não há quem consiga manter os livros apresentáveis.
Que bom, vai para Londres, carinho não lhe vai faltar, vai ser tanto como os dias de nevoeiro, os Londrinos são conhecidos por essa faceta de darem, darem, darem, darem carinho, sorte para o Sr Roberto pois assim não terá necessidade de ser tão carinhoso.
Sei que o António Tadeia não gosta que se levantem estas questões, mas olho para as transferências no futebol, desde a loja dos 15 milhões em Portugal, ao muito dinheiro movimentado pelo Chelsea, principalmente no Chelsea, e cheira mal, cheira a necessidade de investigação.