O futebol sem artolas
A homenagem a Manuel Fernandes devolveu-me a 2001, quando em vésperas de um Sporting-Benfica juntámos os treinadores das duas equipas num almoço para se falar do que devia importar: futebol.
Ontem, apesar de ter havido futebol na segunda-feira, faltei ao meu compromisso convosco, que é o de fazer na mesma o Futebol de Verdade aos feriados, desde que tal se justifique. E faltei porque já antes da marcação do Vitória SC-Sporting (há crónica analítica aqui, para quem quiser ficar mais em dia com aquilo que se passou) tinha assumido com o Tiago Fernandes que estaria na homenagem que ele ia promover ao pai, Manuel Fernandes, a maior figura viva da história do Sporting. Em boa hora o fiz, em primeiro lugar porque esse reconhecimento é justo, e depois porque ali pude regressar aos tempos de um futebol mais saudável, em que as trincheiras do clubismo não travavam o convívio são entre gente bem formada e que até podia deixar-se toldar pelo amor aos seus emblemas e às camisolas que suava domingo a domingo mas que ao menos não era intoxicada pelas centrais de propaganda que hoje matam o futebol de que aprendi a gostar. Lá estavam Toni, João Alves e Vítor Martins, figuras do Benfica. Por lá estiveram António Oliveira e Ricardo Quaresma, que apesar de terem vestido o verde e branco do Sporting, são figuras do FC Porto, como o Jorge Andrade, que passeou a enorme classe de defesa-central pelo relvado de Sarilhos. Lá passaram colegas da CUF e do Vitória FC, jogadores que Manuel Fernandes treinou no Campomaiorense, no Santa Clara ou na UD Leiria e até Zé Maria, figura do Varzim, que viajou do Norte até à margem sul do Tejo apenas pelo prazer do reconhecimento a um antigo adversário. Podem até dizer-me que isso é gente que já saiu do futebol, que por isso já não precisa de entrar na lógica de guerrilha, mas não é essa a questão. A questão é que o futebol mudou a partir do momento em que uma série de “spin doctors” de pacotilha achou que tinha de controlar a narrativa, colocando interesses parciais acima da convivência e até do interesse geral da indústria. Ontem, a ver o enorme Toni assumir papel de destaque na festa de Manuel Fernandes voltei a Abril de 2001, a um encontro na Serafina, que fez manchete do Record, quando eu, o João Marcelino, o João Querido Manha e o José Manuel Delgado levamos os dois homens que na altura eram os treinadores de Benfica e Sporting a almoçar connosco um par de dias antes de um dérbi que ia jogar-se em Alvalade. Nesse dia conversámos, rimos, falámos do momento das equipas, de futebol, partilharam-se histórias e até alguns segredos – e há-de estar para nascer o primeiro aprendiz de feiticeiro capaz de me convencer que o que ali se passou prejudicou qualquer das equipas no jogo ou nesse campeonato, que foi ganho pelo Boavista. O futebol, nestes 22 anos, mudou muito. E mudou para muito pior. Porque desde 2001 deixou de ser acerca do que mais interessa, que são os jogadores e os treinadores, para ser acerca de quem nos quer convencer a todos de que jogadores e treinadores não interessam nada, desde que se controle a narrativa. Nestes 22 anos já perdi a conta aos dirigentes que nos venderam como a lufada de ar fresco definitiva para acabar com a toxicidade do ambiente. Todos vão parar ao mesmo sítio. E o pior é que é um sítio que fede e que submergiu o futebol de que gostamos num monte de estrume e no lodo que nos querem impingir esses artolas que vendem influência a troco de um saco de moedas que devia envergonhá-los.
É agora ou nunca. Manchester City e Arsenal discutem hoje (20h, Eleven Sports 1) quem vai ser o campeão inglês de 2022/23. Há mais jogos até final, mas não está errado quem recorda aquele mítico Liverpool FC-Arsenal de Maio de 1989, que a tragédia de Hillsborough empurrou para uma data posterior à da última jornada e que colocou frente a frente as duas equipas que ainda estavam em condições de ser campeãs. De um lado o poderoso Liverpool FC, que até podia perder o jogo por um golo. Do outro uma jovem equipa do Arsenal, que não ganhava a Liga há 18 anos e vira a vantagem de que chegara a dispor eclipsar-se em escorregadelas sucessivas nas últimas duas partidas, em casa, uma derrota contra o Derby County (1-2) e um empate (2-2) contra o Wimbledon FC, em jogo no qual esteve por duas vezes a ganhar. Parece a história do Arsenal de 2023. O escritor Nick Hornby recorda com brilhantismo esse jogo de 1989 em “Fever Pitch”, o livro que escreveu para documentar as experiências que viveu como adepto quase sempre frustrado do Arsenal. No livro, Hornby diz que não é possível comparar o que sentiu no momento em que, já para lá do minuto 90, Michael Thomas se isolou e fez o 0-2 que valeu o título, a nada da vida quotidiana. Um orgasmo pode ser repetido daí a nada, a um parto falta o elemento-surpresa que levou Brian Moore, então comentador da ITV, que transmitia a partida, a gritar “É agora ou nunca!”... Hoje, no Ettihad, o palco está montado tal como nesse fim de tarde de 1989. O City de Guardiola é mais poderoso, é melhor equipa. O jovem Arsenal de Arteta teve uma vantagem apreciável mas desbaratou-a em três empates seguidos, contra o Liverpool FC, o West Ham e o quase condenado Southampton FC. O City parece que voa, na capacidade mostrada por Bernardo Silva, De Bruyne, Mahrez ou Grealish para colocarem Haaland em condições de ser implacável naquilo em que ele é bom, que é precisamente a ser implacável. O Arsenal caiu muito, sobretudo atrás, com a lesão de Saliba, porque Holding não dá tanta segurança, e sofre golos há seis jogos consecutivos. Mas, tal como em 1989, para o Arsenal, “é agora ou nunca”.
A diferença são quatro golos. Qual é a diferença entre um dia bom e um dia mau? Para o Real Madrid, em Girona, ontem, foi a mesma que para o argentino Taty Castellanos. Foram quatro golos do ex-atacante do New York City na baliza do atónito Lunin, utilizado em vez de Courtois, adoentado. Sim, faltava muita gente a Carlo Ancelotti e, sim, Castellanos acertou sempre que lhe deram a possibilidade de visar as redes, mas houve na exibição global do Real Madrid um odor a desistência que podia ser preocupante se se tratasse de outra equipa. Militão, que é na maior parte das vezes um competidor até excessivo, parecia excessivamente cuidadoso na aproximação ao avançado contrário, como se este fosse feito de porcelana chinesa e houvesse penalização em caso de lhe despentear um fio de cabelo. A diferença entre o foco e o desfoco que se viu ontem chega para arruinar um jogo. No caso dos madridistas se verá se não afeta os objetivos que lhes restam, sobretudo a Liga dos Campeões.