O futebol a fugir de nós
Paralelo entre a bronca de Sevilha, o sururu de Vizela e a fuga do futebol para o Médio Oriente. Todos somos culpados, mas há que dar um passo atrás na defesa irracional dos interesses clubistas.
No mesmo fim-de-semana em que o Real Madrid foi à Arábia Saudita ganhar a Supertaça de Espanha, o jornal suíço Blick fez um pé de vento porque aparentemente o presidente da FIFA, Gianni Infantino, se mudou para o Qatar com a família. Também não acho piada nenhuma a estas deslocalizações, faz-me confusão a legitimação do futebol a regimes como o saudita ou a cedência aos milhões que leva à realização de um Mundial em cerca de 70 quilómetros, no Qatar. Mas, em função daquilo que se passou em Sevilha, cujo dérbi teve de ser interrompido e reatado no dia seguinte, sem público, por causa da agressão a Joan Jordan com uma barra vinda da bancada bética mais radical, começo a entender a ideia. E é bom que a encarem: o futebol está a fugir de nós. E a culpa começa por ser de quem, querendo ganhar a qualquer preço, nos mete a doença no sangue.
O que se passou em Sevilha foi lamentável em todos os aspetos, mas o que nos interessa aqui é perceber se está assim tão longe de acontecer em Portugal. E, como se viu nas cenas de Vizela, ontem à noite, não está. No Benito Villamarín, em jogo da Taça do Rei, o Sevilha FC adiantou-se, o Betis chegou ao empate, com um golaço de canto direto mesmo frente ao local onde ficam os seus adeptos mais radicais, e isso foi o suficiente para, naqueles momentos de catarse coletiva que libertam o selvagem que há em muitos de nós, da bancada vir uma barra que acertou na cabeça de Joan Jordan. O jogador do Sevilha FC foi transportado ao hospital, o jogo foi interrompido, mas tudo o que se passou depois esteve errado, a começar pelo facto de se ter jogado o remanescente no dia seguinte, à porta fechada. Já sem Jordan, que foi substituído, e com vitória do Betis por 2-1. Em Vizela, só houve encontrões, agarrões, insultos, mas felizmente não havia barras plásticas nem outros projéteis à mão do público e tudo se resolveu com o árbitro a distribuir cartões a torto e a direito como se fosse um executivo japonês numa convenção internacional.
Correu pior na Andaluzia. E se a decisão da Federação Espanhola prosseguir com o jogo sem o jogador agredido se justifica pelo facto de ter sido meramente burocrática e provavelmente destinada a proteger os detentores dos direitos, tomada por alguém que não a pensou, pior esteve Manuel Pellegrini, o treinador do Betis, quando veio dizer que “é preciso investigar se uma barra plástica causa assim tanto dano”. Perdão!? E ainda pior esteve Andrés Guardado, futebolista do Bétis, filmado no final da partida a acertar com uma garrafa de água vazia na testa e a cair no relvado de forma teatral, no meio da galhofa dos colegas, que nada mais representava do que a falta de respeito que os profissionais começam a ter uns pelos outros. O futebol está a ficar pouco recomendável e os primeiros responsáveis são os jogadores, cujo sentimento de pertença, mesmo que estimulado por ligações meramente profissionais, acirra comportamentos irracionais, que nos deviam envergonhar a todos.
Guardado é mexicano, Pellegrini é chileno – não são adeptos radicais do Betis, mas tanto um como o outro levaram a integração demasiado longe, tão longe que os seus argumentos são hoje armas na boca dos idiotas que se aprestam a glorificá-los. Elevaram à enésima potência a arte do engano que está cada vez mais sobrevalorizada no futebol e que nos deixa a todos a debater intensidades, se o braço nas costas foi mesmo suficiente para ser assinalada falta e se a mão na cara justifica as três piruetas que se seguiram, na tentativa de castigar o rival com mais um cartão amarelo. A diferença é que enquanto a generalidade dos debatentes crê no que diz, que é evidente que o jogador das suas cores foi agredido e que o adversário se limitou a simular, os profissionais sabem perfeitamente que só estão a tentar tirar vantagem ilícita das suas artes teatrais. No fundo, protagonizam em jogo a cena feita por Guardado após a partida, mas fazem-no sem se rir.
No sururu de Vizela, Rúben Amorim portou-se tão mal como os outros. Foi, como diria Luiz Felipe Scolari, “defender o ‘minino’”, no caso Nuno Santos, que aparentemente reagiu a bocas da bancada mandando água aos espectadores. Mas minutos depois, na flash interview, o treinador do Sporting deu uma lição ao futebol, reconhecendo que os jogadores têm mais é que se aguentar e que, “pelos vistos”, o seu jogador “não teve razão”. Haverá hoje muito idiota a recriminá-lo por esta quebra do vínculo das cores em nome da razoabilidade e de alguma inteligência. E, deixem-me que vos diga, também não subscrevo inteiramente as palavras do treinador do Sporting: mesmo sendo eles muitas vezes os primeiros causadores da irracionalidade, isso de os jogadores terem de aguentar tudo o que vem da bancada pode levar-nos a caminhos perigosos. Mas era importante que mais gente fosse capaz de dar este passo atrás e trouxesse para o meio uma coisa tão simples como a capacidade de pensar além dos interesses clubísticos. Porque se assim não for, o futebol vai mesmo fugir para sítios como o Qatar ou a Arábia Saudita, onde os locais, que o pagam, o vêm muito além de qualquer sentimento de pertença.
Penso que temos exemplos muito concretos que em Portugal já há muito temos uma uma bomba relógio prestes a rebentar. Hoje é muito perigoso levar família e filhos ao futebol, estamos num período que não podemos sair à rua com a camisola do nosso clube porque em certos sítios é perigoso, temos claques que em vez de apoiar o clube, estão mais interessados em fazer desacatos, temos claques ou grupos de adeptos que entraram em conflito e tivemos mortes por isso, (infelizmente). Dirigentes na generalidade do futebol que deveriam ter a responsabilidade de acalmar, vão para a comunicação social incendiar e incentivar ainda mais para que tudo isto aconteça. Penso que se continuarmos a este ritmo as pessoas deixarão de ir aos estádios e a perder a paixão pelo futebol.
Quando há receio de ir ao futebol algo está mal. Quando são os próprios dirigentes a ter nas claques braços armados algo está muito mal. A violência só é má quando os agressores são de outra cor, se forem da nossa há sempre uma justificação. Jogar um mundial no qatar ou a supertaça de Espanha na Arábia Saudita é outro tipo de violência. Uma espécie de violência de colarinho branco com efeitos tão graves como a outra, a física, no que diz respeito ao afastamento dos adeptos.