As lições do caso-Horta
Ricardo Horta falou (pouco) sobre o mercado de Verão e permite que se tirem duas ilações do caso que acabou com a sua permanência em Braga. É possível dizer não e é fundamental haver clareza.
Ricardo Horta falou ontem à SIC sobre a novela que viveu no Verão, período durante o qual as movimentações que se destinavam a levá-lo do SC Braga para o Benfica redundaram no fracasso que todos conhecemos. “Não aconselho a experiência a nenhum jogador”, disse o goleador, que no entanto não foi claro em nenhum momento da intervenção. E é importante que se perceba que a falta de clareza não foi parte do problema – foi, isso sim, o problema. Ainda assim, o contributo que Horta deu, somado àquele que tem continuado a dar semana após semana nos campos de jogo, vem desmistificar essa ideia cobarde que nos é vendida por alguns dirigentes, segundo a qual não é possível dizer “não” a um jogador. Claro que é possível. O que tem de haver é clareza. São essas as duas conclusões que é possível tirar deste processo.
Os jogadores de futebol podem até ter egos do tamanho do Mundo – e tanto maiores quanto mais bem sucedidas forem as carreiras – mas não são seres desprovidos de entendimento. Diz a imprensa de hoje que o FC Porto vai conseguir renovar contratos com João Mário, Zaidu, Pepê e Evanilson, aumentando-lhes os salários e também as cláusulas de rescisão – e é fulcral que os jogadores entendam as duas partes do negócio, que vão ganhar mais, mas que o clube também fica com o direito a dizer-lhes “não” se de repente aparecer alguém com um cheque mais chorudo, ainda aquém do valor estipulado. A questão é que, como se percebe pelo caso Horta, eles entendem. A ideia de que não entendem nasce da cobardia de dirigentes que não são capazes de resistir aos apelos do mercado e não têm coragem de o explicar aos adeptos, identificando as verdadeiras razões da cedência, sejam elas as “parcerias” com os agentes ou as depauperadas contas bancárias dos clubes, que os levam a vender as pratas ao preço do pechisbeque. Ricardo Horta podia querer muito seguir para o Benfica, mesmo que agora se refugie no tal “já passou, já não há volta a dar, é passado” que ontem deixou escapar, como se fosse um crime reconhecer que queria ir embora e que, por exemplo, no final da partida da primeira jornada, contra o Sporting, em Braga, se despediu do público local, convencido de que seria o último jogo que faria ali com as cores arsenalistas. Mas não seguiu e está lá na mesma para responder às necessidades, porque é profissional e tem um contrato a cumprir e vontade de fazer bem o seu trabalho.
Apesar de tudo, mesmo o pequeno passo que deu ao reconhecer que houve qualquer coisa, Horta sentiu necessidade de o temperar com o “é um grande orgulho estar na história do SC Braga” que disse a seguir, como que a descansar os adeptos do clube que representa e a deixar implícito que não vai abandoná-los por outros ao primeiro piscar de olhos. São palavras de circunstância, que as relações entre os clubes e os profissionais não se medem por sentimentos tão abstratos como o orgulho, mas era isso que os adeptos queriam ouvir. E foi isso que ele lhes deu. O futebol, de facto, gera isto em nós. Estou aqui a pedir clareza e – ainda que, num passado não tão longínquo assim, antes do Twitter e do Facebook, eu próprio o tenha feito – defendo hoje, por exemplo, que os jornalistas não devem revelar as suas preferências clubísticas. E não é por achar que elas os condicionam. É precisamente por achar o contrário, por achar que, regra geral, os profissionais não se deixam afetar por minudências dessas, mas sentir que as pessoas não estão preparadas para gerir essa informação no seu quotidiano. As mesmas pessoas que não podem ouvir da boca de Horta que sim, queria muito ir para o Benfica, sem lhe mandarem isso à cara se ele tiver um jogo infeliz com a camisola do SC Braga e meter fora uma bola que devia meter dentro.
No entanto, é importante que se diga, a novela Horta não teve este epílogo por causa da falta de clareza do jogador – que ele, em privado, há-de ter dito o que queria –, mas sim por causa da falta de clareza na forma como ele seguiu de Setúbal para Málaga e depois para Braga. E essa é a segunda ilação a tirar do processo: as coisas têm de ser claras, porque se não forem voltam para nos assombrar. Disse também Ricardo Horta que a experiência que viveu foi penosa a vários níveis. “Pelo que eu passei, pelo que se passou, pelo que se inventou...”, acrescentou, sem dizer o que é que se inventou. Mas não é difícil ver aqui a tentação dos media em dourar a pílula a favor da ansiosa maioria do seu mercado. Só assim se entende, a outro nível, que tenha surgido o rumor segundo o qual Haaland teria uma cláusula de rescisão especial caso quisesse trocar o Manchester City pelo Real Madrid. Pep Guardiola já veio dizer que é mentira e não é difícil entender de onde ela nasceu: da tentação da comunicação social espanhola agradar à imensidão de adeptos madridistas, que prefere que lhe mintam em vez de ser confrontada com a realidade. E a realidade é simples de entender: toda a gestão de carreira do goleador norueguês foi feita com clareza e com capacidade para dizer “não”. Foi dito não ao próprio jogador, que passou por Salzburgo e ficou mais um ano em Dortmund em vez de seguir logo para os grandes que o reclamavam. E foi dito não, por exemplo, ao Real Madrid, que o encaixou pior porque no mesmo Verão ouviu um não de Haaland e outro de Mbappé. E isso também é difícil de gerir.
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