A Ucrânia no Mundial de 2030
A candidatura Portugal-Espanha para o Mundial de 2030 vai passar a ter a participação da Ucrânia. Porque é que isto é um golpe publicitário e faz pouco ou nenhum sentido?
Portugal e Espanha vão anunciar a entrada da Ucrânia na candidatura conjunta à organização do Mundial de 2030 e não me parece arriscado dizer que a coisa faz zero sentido em todos os planos à exceção de um: o da publicidade e da criação de capital-simpatia. Sou europeísta e defendo há muito que o paradigma em que vivemos é cada vez mais continental que nacional, mas uma organização tão intensa e exigente como é a de um Campeonato do Mundo – ou da Europa – coloca problemas que levam estas candidaturas conjuntas a transformarem-se em sarilhos à espera de acontecer. Até consigo conceber um esforço conjunto Portugal-Espanha, países vizinhos, que têm identidade geográfica, línguas semelhantes, a mesma moeda e zero restrições de circulação, mas se já me fez muita impressão a confusão que foi um Euro’2020 itinerante, mais ainda me fará que à candidatura ibérica se junte a Ucrânia por razões que alguém terá de explicar em que medida extravasam o oportunismo de ter Volodimir Zelensky e a bandeira azul e amarela nos posters promocionais.
O mundo está cada vez mais polarizado. A reação dos defensores de Donald Trump à derrota nas últimas eleições americanas ou o panorama geral nas atuais eleições brasileiras mostram essa mesma radicalização de visões. Um povo que é levado a escolher entre Lula e Bolsonaro e que ainda se mobiliza e se convence de que o seu candidato é bom porque o outro é terrível prova na perfeição que andamos cada vez mais a levar por tabela numa batalha dialética entre os bons e os maus. Isto funciona na política como no futebol. Basta ver o esforço dos clubes na criação de narrativas destinadas a diabolizar o diferente. Os outros roubam sempre e são desonestos, mas os nossos não, são impolutos e ajudam velhinhas a atravessar passadeiras na estrada. Além de que são sempre prejudicados pelas arbitragens. Ora nesta batalha super-maniqueísta há uma ideia aceite pela generalidade dos ocidentais: Zelensky representa o bem e Vladimir Putin, o invasor, está do lado do mal. Daí que, por mais esforço que faça para entender o racional da candidatura não veja mais nenhuma razão para este esforço conjunto Portugal-Espanha-Ucrânia a não ser o marketing.
Argumentarão alguns – e provavelmente será por aí que seguirá a explicação oficial – que é mais uma forma de chamar a atenção para a atrocidade que foi a invasão russa, de dar palco a quem quer defender a reposição da legalidade na zona, mas é evidente que a coisa funciona mais ao contrário. Como é evidente que as organizações que mandam no futebol europeu e mundial e compactuam com regimes, chamemos-lhes assim, pouco convencionais, serão as últimas a ter capacidade para legitimar o que quer que seja. Vamos ter um Mundial no Qatar, cujo respeito pelos direitos humanos deixa muito a desejar. Mais: o último foi precisamente na Rússia de Putin. Já tivemos Mundiais na Argentina de Videla, no México do PRI e, recuando no tempo até períodos em que a própria Europa estava numa via mais radicalizada, até na Itália de Mussolini. Tal como tivemos um Europeu na Espanha de Franco, uns Jogos Olímpicos na Alemanha de Hitler e outros na União Soviética de Brezhnev. Faltou a China de Mao para fazer o pleno, mas terá sido seguramente apenas porque os chineses nunca se candidataram a nada antes da modernização.
Neste mundo de hoje, deixou de fazer sentido a famosa frase atribuída a Phineas T. Barnum, o promotor circense que há século e meio dizia que “não há tal coisa como má publicidade”. Há, sim. Cada vez mais. E a este respeito dou muitas vezes o exemplo do genial filme “Wag The Dog” (“Manobras na Casa Branca”, em português), de Barry Levinson, com argumento de David Mamet. Nele, um publicitário opta por inventar uma guerra fictícia com a Albânia, que ocupa nos meios de comunicação o espaço que estes podiam dedicar à divulgação de um escândalo sexual que envolvia o presidente. Lembrei-me do filme ao verificar a extraordinária coincidência temporal entre a fuga de informação que levou o “The Times” a noticiar a entrada da Ucrânia na candidatura conjunta ao Mundial de 2030 e a condenação de Fernando Santos – e por arrastamento, da FPF, que terá sido “mãe” da ideia – no processo que tinha contra a Autoridade Tributária, por receber o salário de selecionador através de uma empresa que lhe pertence, dessa forma escapando ao regime de IRS e entrando no – mais favorável – de IRC. Francamente, porém, não creio que as duas coisas estejam sequer relacionadas. Além de que, não sendo capaz de o defender e não o praticando em nenhuma circunstância, nem sequer naquela possibilidade que quase toda a gente usa, de pagar sem fatura para não nos ser cobrado IVA, vejo muito mais normalidade em quem tenta explorar todas as vias legais para pagar menos imposto do que em quem se aproveita da polarização a que nos leva uma guerra sanguinária para ganhar a atribuição de uma grande competição. Nisso, a FPF e a RFEF não deviam ter entrado.
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