Abel, xenofobia e atualização
O problema dos brasileiros com Abel Ferreira não é de xenofobia. É de falta de atualização. Acreditem, que nós já passámos por aí. E foi há 30 anos. Ainda há quem se lembre.
Abel Ferreira está no olho de um furacão no Brasil por quatro razões. A primeira é porque está a ganhar, porque mostrou competência no trabalho. A segunda é porque não é um tipo ortodoxo. A terceira é porque, sendo competente e heterodoxo, é estrangeiro. Mas é a quarta que distingue o caso Abel de qualquer outro vivido em Portugal, em tempos recentes com Luiz Felipe Scolari, por exemplo, ou até atualmente com Roger Schmidt. É que o Brasil é um país tão grande e tem tanto passado no futebol que os treinadores por lá fazem o que não fazem por cá: enchem o peito de ar e dizem à boca cheia aquilo que pensam os adeptos movidos pelo ressentimento, sem qualquer apego ao politicamente correto. É por isso que não vejo os recentes ataques a Abel por parte de Jorginho, Cuca ou Mano Menezes como manifestações de xenofobia. Vejo-os como atos desesperados de gente ressentida por não ter entendido o que está a acontecer.
A primeira razão é a competência. Dela não restam dúvidas. Abel chegou ao Palmeiras em Novembro de 2020 e, em pouco mais de ano e meio, ganhou uma Copa do Brasil, duas Copas Libertadores, uma Recopa Sul-Americana e um Paulistão, seguindo neste momento, com 22 das 38 jornadas já disputadas, com nove pontos de avanço do Flamengo e do Corinthians na tabela do Brasileirão, o único campeonato que até aqui lhe escapou. Pode gostar-se ou não do tipo de futebol sempre muito equilibrado e ofensivamente pouco excitante do Palmeiras, mas se há uma coisa que não deixa dúvidas a ninguém é a competência do trabalho. Jorginho, que é treinador do Atlético Goianiense, penúltimo colocado na Série A, e foi adjunto de Dunga no Mundial de 2010 – quem não se lembra do quão aborrecido era o futebol do Brasil de 2010 pode ir rever o 0-0 com Portugal – diz que o sucesso de Abel se deve ao capital injetado no Palmeiras pela Crefisa. “Eu queria ver era ele ser campeão aqui no Atlético”, exclamou, como se o dinheiro de José Roberto Lamacchia e da sua esposa, a presidente Leila Pereira, tivesse beneficiado apenas Abel. Não. A Crefisa chegou ao Verdão em 2015. Já lá estava em 2016 e 2017, quando Cuca treinou o clube – um Brasileirão ganho em duas campanhas – e em 2019, quando por lá passou Mano Menezes – zero títulos.
A segunda razão é a heterodoxia do treinador português. Abel Ferreira não é um tipo comum. Muitas vezes encontra em aspetos exteriores ao jogo formas peculiares para motivar os seus jogadores. Em causa está o facto de o treinador ter recolhido aos balneários para ouvir música durante o desempate por penaltis contra o Atlético Mineiro de Cuca, nos quartos-de-final da Copa Libertadores. Ora isto pode ser visto de diversas maneiras. Jorginho, por exemplo, achou que era um ato de “cobardia” – e já ouvi muita gente em Portugal dizer isso do momento em que Toni virou as costas ao campo antes do penalti falhado por Veloso contra o PSV na final da Taça dos Campeões Europeus que o Benfica jogou em 1988, por exemplo. Mas pode haver quem ache que foi apenas superstição. Como pode haver quem ache que é o reconhecimento prático de que naquele momento o treinador já não podia fazer nada. Ou que é uma forma de transmitir confiança aos jogadores, de lhes dizer que confia tanto neles que nem precisa de estar lá. Eu vi a coisa nesta última categoria, a dos fait-divers motivacionais destinados a criar uma narrativa. Porque Abel é o tipo de treinador que se preocupa com essas coisas, com as metalinguagens que vão muito além daquilo que se diz.
A heterodoxia de Abel, no entanto, revelou-se também nas palavras ditas. Passamos a vida a queixar-nos – e quase sempre com razão – de que os treinadores não falam do jogo, mas se falam isso é um problema? O jogo contra o Atlético Mineiro de Cuca foi pouco normal, porque o Palmeiras ficou com dez jogadores aos 29 minutos, por expulsão de Danilo, e depois com nove aos 82’, quando Gustavo Scarpa viu também o cartão vermelho. Em face do empate (2-2) na primeira mão, em Belo Horizonte, um golo apuraria o ainda campeão brasileiro para as meias-finais da Libertadores – que Cuca perdeu para Abel, no Santos FC, em 2020, e da qual foi eliminado por Abel em 2021 e 2022, já no Atlético Mineiro, nas meias-finais e agora nos quartos-de-final. Ora se, mesmo com nove homens em campo, o Palmeiras levou o 0-0 até ao fim, convinha explicar como e porquê. No final, Abel foi honesto e mais destemido do que o normal na apreciação à partida. “Quando Cuca vir de novo o jogo, perceberá que a sua equipa tinha sete jogadores por fora do nosso bloco. Há que ter gente por dentro para atacar a nossa linha”, afirmou. Deu a sua leitura do jogo, mas estas declarações foram vistas como falta de respeito. Jorginho sentiu necessidade de dizer que Abel “não inventou o futebol”. Mano Menezes, treinador do Internacional de Porto Alegre, que também já foi selecionador brasileiro, aproveitou a vitória recente sobre o Fluminense para vir chamar-lhes “aula”, com despeito evidente. É possível que as palavras de Abel Ferreira após o jogo tenham revelado uma dose superior ao normal de euforia, mas tenho pena que esse alegado respeito pelos colegas de profissão não permita aos treinadores falar mais vezes do jogo em si. Porque se o fizessem até eles evoluiriam.
E isto traz-nos à terceira e à quarta razões: o facto de Abel ser estrangeiro e de ser aqui que Brasil e Portugal se separam, não por qualquer superioridade moral lusitana, mas porque por cá estamos habituados às influências estrangeiras no futebol, enquanto que, inflados com o peso de um passado glorioso, os brasileiros continuam a achar que não têm nada a aprender com ninguém. E têm. Oh se têm... Em Portugal, tivemos uma invasão de treinadores centro-europeus nos anos 20 e 30. Depois vieram os ingleses, dos anos 40 até muito recentemente. Os brasileiros começaram a aparecer na década de 50 e ainda recentemente, quando Luiz Felipe Scolari foi selecionador nacional, os portugueses seguiram o seu apelo metalinguístico – a intenção era a de mostrar uma nação unida em torno do futebol e motivar a equipa – e encheram as janelas e as varandas com bandeiras para celebrar o Europeu de 2004. Com todos eles o futebol português evoluiu, o que ajuda a explicar as razões pelas quais a atitude dos portugueses para com os treinadores estrangeiros é geralmente reverencial. Há quem destoe? Claro que sim. Scolari, por exemplo, era ridicularizado em círculos de “entendidos” por causa do seu misticismo, da Nossa Senhora do Caravaggio ou do folclore nos autocarros para os estádios. Bastou fazerem-se meia dúzia de perfis de Roger Schmidt – e eu também escrevi um – para que os adeptos rivais logo viessem reclamar que o alemão não descobriu nada, como se alguma vez alguém tivesse dito que ele tinha sido o criador da escola de jogo em que entram Klopp ou Rangnick.
A questão é que, ao contrário do que sucede no Brasil, por cá nunca se ouviu isso, pelo menos de forma aberta, da boca de outros técnicos. O que nos ajuda a entender que o problema aqui não é de xenofobia. É a perda acelerada de influência por parte de uma classe que não se atualizou e se recusa a entendê-lo. Os três primeiros classificados do Brasileirão são ou já foram esta época comandados por técnicos estrangeiros – são o Palmeiras de Abel Ferreira, o Corinthians de Vítor Pereira e o Flamengo, onde esteve Paulo Sousa. Em Portugal não temos um estrangeiro campeão desde Co Adriaanse em 2006. E não assistimos a uma tão grande influência externa desde 1993, quando o FC Porto foi campeão com Carlos Alberto Silva, pelo Benfica, segundo classificado, passou Tomislav Ivic e o Sporting era comandado por Bobby Robson. Nos 30 anos que passaram, os treinadores portugueses evoluíram, atualizaram-se, estudaram. O caminho é esse e quem não o entender passará à história.
Ontem, pode ter-lhe escapado:
Quer participar em debates permanentes sobre futebol? Ou ouvir os textos em vez de os ler? Isso é possível no meu servidor de Discord ou no meu canal de Telegram, a que pode aceder no link-convite para subscritores Premium, aqui em baixo:
Continue a ler com uma experiência gratuita de 7 dias
Subscreva a António Tadeia para continuar a ler este post e obtenha 7 dias de acesso gratuito ao arquivo completo de posts.