A vitória do treinador humano
O sucesso leva Abel Ferreira a projetar uma imagem de vulnerabilidade, diferente da infalibilidade de Jesus, da frieza “cool” de Mourinho ou da distância professoral de Artur Jorge.
Abel Ferreira escolheu as horas após a vitória sobre o RB Bragantino, que colocou o Palmeiras na final do campeonato paulista, para anunciar que vai aceitar a proposta do clube para ficar até 2024, dessa forma arrefecendo o apetite de clubes europeus alegadamente interessados na sua contratação. O Palmeiras negou os valores publicados na imprensa brasileira, que dizia que o português se tornaria o mais bem pago de todos os treinadores da América do Sul, mas mais milhão menos milhão o que importa agora realçar é o sucesso extraordinário de um tipo diferente de treinador face àquilo a que o mundo do futebol nos vem habituando. Em todas as suas declarações públicas, Abel projeta intencionalmente uma imagem de vulnerabilidade, uma fragilidade rara no mundo altamente profissionalizado e esterilizado do futebol de alta competição. E prova que, tal como no plano de jogo, também na definição da personalidade do líder há mais do que uma forma de atingir o Nirvana que é ganhar. Até hoje, o que ainda ninguém encontrou foi o caminho do meio.
Ainda não li o livro recentemente lançado por Abel Ferreira – “Cabeça Fria, Coração Quente” –, mas tudo aquilo que ele diz, em conferências de imprensa e em raras entrevistas, como a que concedeu ao programa Roda Viva (que pode ver aqui), vem em sentido absolutamente inverso ao de outros treinadores portugueses de sucesso internacional. Antes de Abel vencer um par de Copas Libertadores com o Palmeiras, três outros treinadores portugueses tinham ganho a prova máxima de clubes na Europa ou na América do Sul. E todos com personalidades e modelos de condução de homens diferentes. Artur Jorge, campeão europeu com o FC Porto em 1987, era um professor distante, um homem formado em letras, cerebral, que lembramos por dizer que via futebol com banda sonora de música clássica. José Mourinho, igualmente campeão da Europa pelo FC Porto e pelo Inter Milão, cultivava uma imagem “cool”, mantinha com os jogadores uma relação de irmão mais velho e autodenominava-se “especial”. Jorge Jesus, campeão sul-americano pelo Flamengo, preferia projetar uma imagem de obsessão e infalibilidade, de líder metódico a quem nada escapa. Abel Ferreira, já bicampeão da América do Sul pelo Palmeiras, faz tudo ao contrário.
E no entanto, em ano e meio desde que chegou ao Palmeiras, em Outubro de 2020, esteve já em oito finais. Ganhou quatro – além das duas Libertadores, uma Copa do Brasil e a Recopa sul-americana –, mas é o próprio quem chama a atenção para o facto de ter perdido outras quatro. Esta recusa do politicamente correto pode até ser genuína, mas a partir do momento em que é percecionada pelo próprio começa a parecer estratégica. Até porque depois é complementada com outras projeções de vulnerabilidade. As saudades da família, de quem fez depender a renovação, humanizam-no, bem como o reconhecimento de limitações, por exemplo na forma como se comporta no banco. A abertura perante o grupo de trabalho acerca de pormenores da vida pessoal – na Roda Viva contou que uma vez disse aos jogadores que não estranhassem se ele se atrasasse no dia seguinte, porque a esposa estava em São Paulo – aproxima-o daqueles que lidera e provavelmente leva-os a dar mais de si próprios pelo grupo, porque sentem que o chefe é um deles. E o recurso a máximas vindas das teorias de autoconhecimento e da autoajuda solidifica tudo na relação entre treinador e jogadores. O mundo do futebol está cheio de gente pronta a soltar o azedume quando não ganha e Abel Ferreira aparece a citar a lenda dos três Budas, o cego, o surdo e o mudo: “Não vejas o mal, não ouças o mal, não fales o mal”.
A discussão em torno do sucesso de Abel Ferreira no Brasil deve ir muito para lá do plano de jogo, se é muito defensivo ou se, com o grupo de jogadores que tem, poderia ganhar de outra forma – e eu creio que não podia. Aliás, deve mesmo ir muito para lá da constatação desta forma diferente de liderar o grupo, uma forma arriscada, que deve partir da capacidade para sentir o pulso a cada balneário – porque há grupos que se aproveitam desta vulnerabilização para darem a facada no chefe e outros que a aceitam e fazem dela trampolim para render mais. O próprio Abel Ferreira diz que o futebol funciona por ciclos e reconhece que a um ciclo de sucesso pode suceder-se um outro de insucesso, muitas vezes face a formas idênticas de trabalhar. Aqui não há métodos infalíveis nem situações eternizáveis, como se viu na forma como Artur Jorge, José Mourinho e Jorge Jesus lidaram com as curvas descendentes que a vida e o futebol lhe apresentaram. E cada um lidou com elas à sua maneira: Jorge afastou-se, Mourinho deixou por momentos o azedume superar a tal frieza “cool” e Jesus disparou para razões externas que negligenciara quando se afirmava dominador de todos os elementos em seu redor.
Abel Ferreira tem sido, desde que trocou Braga pelo PAOK, um asceta do futebol. Em São Paulo, como em Salónica, vive longe da família, dedica-se a mil por cento à profissão. E tem tido muito sucesso, no caso do Palmeiras com um futebol que está longe da beleza estética requerida, sobretudo pelos rivais – que os adeptos do Verdão não se queixarão assim tanto. Tal como Buda, para ele chega agora a altura de recusar o ascetismo e optar pelo caminho do meio. De ganhar com a família, que provavelmente o dispersará. De ganhar a jogar um futebol mais ofensivo e mais próximo daquele que mostrou no SC Braga ou até no PAOK. Será agora, a ganhar ou a perder, que veremos se ele encontra o caminho do meio que até hoje ninguém descobriu. Porque no futebol, na verdade, nada é eterno. Nem o Nirvana das vitórias.
Tive a oportunidade de ver a entrevista toda de mais de 1h que ele fez á Roda Viva. Desde que JJ foi para o Brasil e teve sucesso começei a seguir o futebol brasileiro e agora até vejo jogos sobretudo dos clubes onde estão os nossos Portugueses. Eu gostei muito de ver a entrevista do Abel até estou a pensar comprar o livro de possível. Acho que está muito mais treinador agora, e nota-se que tem os jogadores do seu lado e para ter sucesso no futebol isso conta muito. Acho que se continuar a acumular troféus acabará por virem buscá-lo, sobretudo algum dos 3 grandes de Portugal, mas também clubes da Europa, e gostava de o ver num bom clube Europeu porque acho que tem competências para isso
Interessante todas as reflexões que são feitas sobre o mister Abel Ferreira. Eu sou torcedor de um dos rivais do Palmeiras e me espanto no quanto que há jornalistas da imprensa brasileira que o atacam de forma xenofóbica, com o intuito de agradar o patrão. São poucos jornalistas que fazem jus à profissão. Muitas vezes me envergonho desses que se chamam jornalistas e fazem ataques de cunho pessoal à pessoal de Abel Ferreira. Podemos até discutir o estilo e a personalidade em alguns momentos, no entanto os adeptos do Palmeiras amam ver tais resultados e ver o quanto que jogadores como o Danilo, o Gustavo Scarpa, Zé Rafael, Rony, Weverton, Gustavo Goméz, Dudu, etc. têm se destacado sob a batuta de Abel.