A Superliga do bem
A Superliga é um comboio de alta velocidade que acelera em nossa direção há décadas. A ideia não é travá-lo à força de braços. É conduzi-lo para onde ele possa causar mais bem do que mal.
A Liga dos Campeões vai entrar em 2024 numa nova fase, com mais jogos, um sistema de disputa novo e mais dinheiro – e infelizmente no caso dos clubes portugueses com menos uma vaga. Sabe-se agora que, como se adivinhava, esta será uma simples fase de transição. A UEFA aprovou este novo formato por três anos, até 2027, e já está em conversações avançadas com a ECA, a Associação dos Clubes Europeus, para o substituir pela ao mesmo tempo ansiada e odiada Superliga, mas por uma Superliga que será apresentada como uma Superliga do bem. O plano foi alvo de uma fuga de informação e revelado pelo jornalista Alfredo Relaño no El país de domingo: três divisões, a que se chamaria Superliga, Liga Europa e Liga Aspirante, com 18 clubes em cada uma, quatro descidas anuais da segunda para a terceira – compensadas com outras tantas subidas, como é natural – e duas da primeira para a segunda, faltando ainda decidir sob que critérios, porque os grandes clubes querem reduzir o risco de virem a baixar de escalão. Da mesma forma, estará ainda em cima da mesa a possibilidade de haver 34 jogos, todos contra todos a duas voltas, ou de se dividir os clubes em dois grupos, seguidos de uma fase final, bem como de fazer jogar a competição a meio da semana ou ao fim-de-semana, trocando as voltas às Ligas nacionais. Quem faz o favor de me ler há algum tempo sabe que sempre vi o nascimento da Superliga como inevitável – já desde que, aí por 1990, entrevistei o britânico Alex Fynn, o pai espiritual da Premier League, na altura contratado por Berlusconi para apresentar um modelo de Superliga que impedisse azares como o emparelhamento dos campeões de Espanha e de Itália na primeira eliminatória da Taça dos Campeões Europeus, como sucedera em 1987, com o afastamento imediato de um deles, no caso o SSC Nápoles de Maradona, e a perda de receita inerente. A motivação do patrão do Milan era a racionalização do negócio, mas por trás da evolução estava a constatação de que o futebol é um reflexo da sociedade, dependente de muitas coisas que o rodeiam, como os meios de comunicação ou as facilidades de transporte, forçando uma cíclica mudança de paradigmas e a construção de novos modelos. Há 100 anos, sabendo que para ir de Lisboa ao Porto – e já nem se fala de Madrid, Paris, Londres ou Berlim... – levava um dia na estrada, o adepto comum encaixava num paradigma regional e apegava-se aos dérbis locais. Depois, com as autoestradas e a vulgarização dos comboios, com os relatos na rádio, passou a encarar o futebol como um combate nacional, conduzindo à criação dos clássicos. Hoje, com as facilidades nas viagens de avião e as transmissões por satélite, com a internet e os seus streamings, o paradigma passou a ser continental. Esse futuro já está aí e é tão imparável como um comboio de alta velocidade: não serve de nada metermo-nos nos carris a fazer peito à espera de o parar através da força bruta e mais vale tentar saltar para a cabina dos comandos de maneira a dirigi-lo para onde se quer. A Superliga vai mesmo acontecer e há muito que, na defesa dos interesses do futebol nacional, digo que a FPF devia aproveitar a influência que tem nos areópagos internacionais para a levar para onde ela possa causar-nos menos dano. É que o plano de Abril de 2021 – e pode ler o que então escrevi sobre o tema em três artigos sucessivos aqui, aqui e aqui – seria absolutamente catastrófico, uma vez que acertava em cheio nos dois maiores problemas que esta ideia pode trazer: a competição seria limitada a um clube fechado de poderosos, sem via ascensional de acesso para os outros clubes, e atrofiaria os calendários de uma maneira que ia levar esses maiores clubes a deixar as Ligas nacionais, mais ano menos ano. Essa tentativa de secessão comandada pela Juventus e pelo Real Madrid não foi avante e isso foi visto como uma vitória do povo, mas na verdade o que aconteceu foi que a UEFA meteu a bota na porta, deixando desde logo bem claro que a coisa até poderia acontecer, mas a partir de uma base diferente. O que estava em causa não era se a Superliga avançava ou não. Era quem controlava a distribuição da receita. Acharam os maiores clubes que não precisavam da UEFA para nada, que podiam fazer tudo sozinhos, mas perderam a luta porque o fizeram de uma forma que roçava o amadorismo. Com a UEFA a mandar, a competição não será absolutamente igualitária – como já não o é a atual Liga dos Campeões. Mas acaba por ser o compromisso possível. Por um lado, com bons resultados, qualquer clube sabe que um dia pode lá chegar. Por outro, garantindo que baralha, parte e dá quando se trata do dinheiro, a UEFA poderá guardar um quinhão para redistribuir. E é aí que vai estar a verdadeira luta.
E os calendários? Resta a questão dos calendários. Se um clube bem-sucedido na atual Liga dos Campeões faz 13 jogos, incluindo a final, e os mais poderosos sabem que nem precisam de encarar os seis da fase de grupos com intensidade total, porque regra geral passam sempre, um modelo com 34 jogos e sistema de Liga, por pontos e jornadas, não implica apenas mais 21 partidas – obriga-os a dar tudo em cada momento. Como se encaixam mais 20 jogos neste calendário que já está tão atrofiado? Só há duas respostas para isto. Ou planteis aumentados, com rotação máxima nas partidas das Ligas nacionais, ou abdicação pura e simples de jogar no plano interno. Porque racionalmente não é possível ter jogadores a fazer 80 jogos por ano – já os 50/60 atuais são uma violência. Quer dizer, há uma terceira resposta, que anda na boca de muita gente. Há dias, Guardiola falava mesmo na possibilidade de uma greve de jogadores como resposta ao aumento do número de jogos e das lesões que esse aumento provoca. Este, porém, é um tema demasiado sério para ser encarado na base do “soundbyte”. “Ai, que flagelo, que o futebol está um negócio”. Está, sim senhores. E no dia em que as associações de jogadores estiverem prontas para debater uma redução de salários de 20 por cento, até pode ser que os clubes estejam dispostos a encarar a redução dos calendários noutros 20 por cento.
Dia de decisões. Hoje há Champions, com o Braga em Berlim e o Benfica em Milão. O dia já começa a ser decisivo para as duas equipas, que perderam na primeira jornada, em casa. Os minhotos, tendo em conta a presença de Real Madrid e SSC Nápoles – os tais da eliminatória que gerou o primeiro estudo acerca da Superliga – no seu grupo, já estarão mais fixados numa terceira posição, que lhes permita seguir na UEFA através da Liga Europa, mas para isso têm de fazer um resultado útil hoje, na visita ao Union Berlim. Os lisboetas chegam a Milão num bom momento, mas são esperados por um Inter que tem sido ofensivamente implacável, e sabem que mesmo que vão a Salzburgo recuperar os três pontos que perderam na Luz, lhes convém forrar o alforge com pontos contra Inter e Real Sociedad, num grupo muito aberto. Ainda não é dia de tudo ou nada, mas nem um nem outro podem encarar os jogos de hoje com leveza.
Já lhe dei o meu cartão? Ainda me ri, para não chorar, com as tentativas feitas no Twitter por uns quantos alucinados de provar que há clubes – nunca os deles, claro... – que mandam nisto tudo, a ponto de haver jogadores que forçam a expulsão antes de os defrontar. Sucede que a próxima jornada da Liga os deixa a todos não a falar sozinhos mas a olhar para o espelho. É que se Holsgrove (Estoril) foi expulso e não vai defrontar o Benfica na próxima ronda, David Simão (FC Arouca) também foi e ficará fora do jogo com o Sporting e Gonçalo Costa (Portimonense) viu um vermelho que o impedirá de estar no desafio contra o FC Porto. Difícil era que isto não sucedesse, de resto. Houve nove cartões vermelhos em outros tantos jogos na sétima jornada da I Liga – e os especialistas que povoam o nosso espaço mediático ainda queriam mais. Uma barbaridade para a qual só há duas explicações. Ou os nossos jogadores são os mais violentos do mundo ou os nossos árbitros andam falhos de bom-senso. Eu alinho na segunda justificação e acho que a culpa não é só deles. Expulsar um jogador deve ser a última coisa que um árbitro quer fazer – e se assim não for alguma coisa está errada com ele. Em Portugal, contudo, os árbitros são demasiado ligeiros com os amarelos, que dão por duas razões: por tudo e por nada. E daí aos vermelhos que estragam jogos é um pequeno passo. É verdade que os regulamentos empurram cada vez mais os árbitros para o autoritarismo, porque a aplicar-se a letra da lei nenhum jogo terminaria com menos de uma dúzia de amarelos e três ou quatro vermelhos. Há um problema regulamentar, portanto, porque a 18ª lei do jogo, a do bom-senso, é a única que não está escrita. Mas ainda ninguém me convenceu de que o verdadeiro problema não seja o excessivo protagonismo dado às arbitragens no espaço mediático, levando os juízes a proteger-se de modo a nunca serem apanhados na curva. “Aqui mostrou amarelo e ali não mostrou”, acusam-nos. E eles, em resposta, mostram sempre. “Já lhe dei o meu cartão?”, perguntam com um sorriso afável.
Muito bom!! 100% de acordo