Obituário e exéquias de um nado-morto
A Superliga foi derrotada pela sua própria incompetência, pela falha na inclusão e na representatividade e pela reação enérgica dos adeptos ingleses. E como será o futuro?
A Superliga morreu à nascença. Foi um nado-morto, em parte devido à reação enérgica dos adeptos em Inglaterra, muito reforçada pelas palavras de jogadores e treinadores dos clubes rebeldes, mas sobretudo porque, tal como nasceu, não tinha condições de sobrevivência. Já o tinha dito ontem no Futebol de Verdade: já vi bailes de finalistas mais bem organizados do que esta tentativa pífia de avançar com a que pretendia ser a competição mais importante do desporto mais globalmente seguido de todo o Mundo. Florentino Pérez, Andrea Agnelli e os norte-americanos que impulsionaram este projeto fracassaram a toda a linha e terão agora de suportar o opróbio do povo do futebol, mas desenganem-se aqueles que pensam que esta foi uma vitória da alma dos adeptos. O futebol-negócio está aí há décadas e veio para ficar. O que este processo tão célere nos disse é que há limites para tudo. Para o descaramento e para a incompetência.
Escrevi logo no dia do lançamento do projeto que o lançamento da Superliga era uma espécie de jogo de póquer e que, naquela altura, tanto os rebeldes como a UEFA estavam ainda a pôr as fichas na mesa, mas que só se saberia quem levaria a melhor quando fosse o momento de mostrar a mão de cada um. Enganei-me numa coisa: os rebeldes não tinham um “full house” para combater o póquer de reis da UEFA, mas sim um mísero par de valetes: Florentino e Agnelli. A Superliga fracassou porque nem os clubes dissidentes nem o banco que os apoiava nos desejos de secessão – o JP Morgan – se deram ao trabalho de perceber coisas básicas. Bastava terem feito um miserável estudo de opinião para verem que a ideia de Superliga não provocaria grandes abalos nos espanhóis ou nos italianos, que não saíram à rua, mas que iria virar do avesso o tradicionalista futebol inglês. Bastava terem um pingo de senso comum para perceberem que, além disso, mesmo que o projeto passasse sem problemas em Inglaterra, Itália e Espanha, seriam vistos como maus da fita em 52 dos 55 países filiados na UEFA, devido à insustentável falta de representatividade da prova que estavam a criar. Uma Superliga sem alemães? Sem franceses? Sem portugueses, russos, holandeses, turcos, gregos, ucranianos, belgas?
O que matou à nascença a Superliga não foi o facto de representar o negócio, a ganância, a vontade de acumular lucros acima de qualquer razoabilidade. Também a UEFA e a sua Liga dos Campeões ou a própria Premier League têm vindo a caminhar nesse sentido – e está tudo bem, que o Mundo é assim mesmo. O que matou à nascença esta Superliga foram a sua falta de representatividade e a sua falta de noção daquilo que, apesar de tudo, ainda é o futebol, onde, como muito bem disse ontem Pep Guardiola, há sempre a noção de que a um esforço corresponde uma recompensa. Não deixa de ser curioso que um dos mais ferozes opositores desta ideia de Superliga tenha sido Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido e ex-jogador de rugby dos Old Etonians, quando o rugby é ainda menos representativo e inclusivo do que este projeto, sendo de todo impossível a clubes portugueses, por exemplo, participar na Taça dos Campeões Europeus. E Portugal está neste momento entre as dez primeiras nações do rugby europeu. Mas o rugby é o rugby. E o futebol fez todo um caminho de inclusão que faria abortar o projeto nas suas próprias contradições, bem à vista nas declarações de Florentino Pérez.
Aqui chegados, então, o que vai acontecer? As consequências serão penosas. A má vontade popular vai pesar em cima dos doze desertores, mas certamente não a ponto de fazer quem quer que seja mudar de clube. Cabeças rolarão – Ed Woodward, do Manchester United, foi o primeiro, suspeita-se que Agnelli, da Juventus, pode ir a seguir, decapitado pelo primo Elkann – mas os clubes reencontrarão o seu caminho e até serão acolhidos de braços abertos por uma UEFA que sabe bem que é mais forte com eles do que sem eles. A nova Champions vai avançar, com mais concessões aos grandes e ao grande capital, restando perceber se às custas dos pequenos ou da classe média, como aconteceu na famigerada reforma-Platini. E, embora tenha visto os seus poderes reforçados por esta tentativa de secessão, Aleksandr Çeferin ficou a saber que tem de redobrar a atenção. Aplica-se aqui a frase de Sun Tzu, na “Arte da Guerra”: “Mantém os teus amigos por perto e os teus inimigos mais perto ainda”. Para prevenir novas crises, a UEFA tem de trabalhar com as forças motrizes do futebol europeu na construção de um futuro que as satisfaça. Quem são elas? Os grandes clubes, as grandes federações, a banca e os adeptos com capacidade de mobilização, que é como quem diz, os ingleses.
Gozem a vitória enquanto podem, que os tempos que aí vêm não serão fáceis.