Mitos e ideias erradas acerca da Superliga
A criação da Superliga transportou os adeptos para um presente distópico e levou à criação de ideias falsas e radicais. Aqui ficam algumas.
A Superliga, cuja criação foi ontem anunciada por 12 dos maiores clubes europeus, motivou fortíssima reação popular, inclusive dos adeptos e de alguns jogadores dos clubes fundadores. É apresentada como o presente distópico, como um filme-catástrofe daqueles produzidos por Hollywood, nos quais, no entanto, contra todas as probabilidades, o herói acaba por vencer. E à volta da sua criação já começaram a circular mitos, bem como algumas ideias erradas, cuja intenção é fazer abortar o projeto. Aqui fica uma tentativa de esclarecer algumas coisas, que não são tão más como as pintam os doze desertores do seio da UEFA nem tão puras como as veem os que pretendem a manutenção do status quo.
A Superliga representa o futebol-negócio e acaba com o futebol-paixão. Ontem, as redes sociais encheram-se de fotos de campos pelados, alguns cheios de ervas-daninhas a crescer junto às marcações, acompanhadas de mensagens a dizer que a Superliga não tem alma, que a paixão está no futebol de hoje e não nesse futuro. É um mito. A Liga dos Campeões já é futebol-negócio. As Ligas nacionais já são futebol-negócio. Já o são há uns 30 ou 40 anos. O futebol paixão é o clube da nossa terra, é ir ver os nossos filhos jogar nas camadas-jovens e é, no limite, o clube de cada um – se ele é o Real Madrid, com certeza que também há paixão ali. A pergunta que gostava de colocar a cada um desses críticos é se, antes de a pandemia impedir os jogos de juniores, por exemplo, iam assistir a esses jogos por paixão, a um domingo de manhã, à chuva, ou se ficavam no sofá a ver os jogos que as Ligas de topo calendarizam para aquelas horas de forma a satisfazer os mercados asiáticos. O que se passa é que já estamos a viver o futebol-negócio há pelo menos 30 anos e, mesmo assim, este é o desporto mais inclusivo do panorama europeu – olhem, por exemplo, para o rugby, no qual não é possível entrar nas Seis Nações ou na Taça dos Campeões Europeus a não ser que se faça parte de uma elite. Não é esse o problema maior da Superliga.
A Superliga é o futebol dos ricos. Mentira. A Superliga será, quanto muito, o futebol dos que estão tão endividados que não sabem o que fazer à vida. Todos somados, os doze desertores somam 7.724 milhões de euros de dívida acumulada, a uma média de 643 milhões por clube. Três dos doze estão acima dos mil milhões de euros de dívida: o Chelsea (1.510 milhões), o Tottenham (1.280 milhões) e o FC Barcelona (1.173 milhões). Portanto, por muito bela que seja, a frase “criado pelos pobres, roubado pelos ricos”, não serve para caraterizar o futebol nem a tentativa de secessão protagonizada pela Superliga. O grande problema, aliás, como o explicou Florentino Pérez, presidente do Real Madrid, ontem, na TV, é o crescimento da dívida em face à diminuição de receita provocada pela pandemia – só no caso dos merengues, diz Pérez, foram 400 milhões de euros. Ora, assim sendo, como é que um presidente consegue manter-se na crista da onda e contratar novos galácticos todos os anos? Deve ser triste ir ver o saldo e perceber que não há dinheiro para Mbappé ou Haaland…
A Superliga segue os princípios do desporto norte-americano. Outra mentira, esta criada pela soma de várias constatações: a de que quatro dos 12 clubes rebeldes pertencem a norte-americanos (Manchester United, Arsenal, Liverpool FC e Milan), a de que o banco disposto a financiar a operação (o JP Morgan) é norte-americano e a de que, tal como as Ligas norte-americanas, esta é uma Liga fechada, por convite. Mas confundir essa coincidência com os princípios do desporto norte-americano é um excesso tão grande de boa vontade que chega a ser ridicularizável. As Ligas norte-americanas são representativas: tanto a NBA como a NFL, por exemplo, têm, cada uma, equipas de 23 estados dos EUA, face aos três países que estão na Superliga. Entre as duas, só na NBA há um estado (a California), com quatro equipas numa só Liga, enquanto que esta Superliga consegue a “proeza” de ter metade dos seus membros de um só país (a Inglaterra). Depois, entre os princípios do desporto norte-americano estão aspetos como a busca de competitividade, introduzida pela realização dos “drafts”, em que os piores classificados têm direito às primeiras escolhas de jogadores novos e assegurada pela inclusão de tetos salariais e pelo facto de quase todos os jogadores não terem contrato com os clubes mas sim com as Ligas, que podem forçar a sua ida para um ou outro local. Tudo coisas que, naturalmente, a Superliga não quer.
Os clubes da Superliga vão ser expulsos e pronto. Não é assim tão líquido que isso seja possível. A exclusão destes clubes da Liga dos Campeões não será um problema – eles querem sair mesmo… Já a sua exclusão das Ligas nacionais pode ser um enorme berbicacho legal. No basquetebol, que há 20 anos criou a sua própria Superliga – a Euroliga – isso não só não foi possível como a FIBA acabou por ceder, empurrada pelas leis da concorrência. Além disso, por muito que o coração agora mande esbracejar e protestar com veemência, essa exclusão será contrária aos interesses comerciais das próprias Ligas. Quanto passaria a valer a Premier League nos mercados internacionais de direitos televisivos sem os seis desertores? Mais complicada ainda se apresenta a vontade de excluir os jogadores daqueles clubes dos jogos das seleções nacionais. Este é, no entanto, o assunto mais pantanoso de todos os que rodeiam a criação da Superliga. Dos tribunais espera-se tudo.
A Superliga é a personificação do diabo no futebol. A Superliga Europeia não é uma coisa má. Esta Superliga é uma aberração. Mas o conceito, em si, já não é o futuro. É o presente. O paradigma há muito que deixou de ser nacional para passar a ser global, pelo que faz sentido que no topo da pirâmide da UEFA esteja um campeonato europeu de clubes. Hoje em dia é mais fácil e mais rápido para um português chegar a Moscovo do que era, há 90 anos, quando se criou a Liga nacional para a sobrepor aos campeonatos regionais, chegar de Lisboa ao Porto ou de Bragança a Coimbra. Além disso, só quando passarem a beneficiar da possibilidade de aceder ao mesmo “core” de receita das grandes Ligas é que os clubes de países pequenos e de classe média, como o nosso, poderão verdadeiramente competir com eles. A diferença de orçamento entre os grandes e os nossos – que impede qualquer clube que não seja dos Big Five de chegar às meias-finais da Liga dos Campeões – não foi gerada pela Champions, mas sim pela diferença de capacidade de rentabilização das Ligas internas nos mercados mundiais. Portanto, o que está mal não é a criação de uma Superliga. É a criação desta Superliga, sem real capacidade de representação e sem ligar ao mérito desportivo na sua criação de vagas vitalícias.