Super bronca com a Superliga
A UEFA vai anunciar a nova Liga dos Campeões mas o Real Madrid e o grupo de rebeldes que o seguem já fizeram saber que vão a jogo sozinhos. A Superliga é boa, mas esta é uma catástrofe.
O dia de hoje pode ser o mais importante da história do futebol desde o que viu nascer as competições europeias, na década de 50. Doze clubes, comandados pelo Real Madrid e pelos norte-americanos donos de Manchester United, Liverpool FC e Arsenal, estão firmemente dispostos a romper todos os laços com as estruturas vigentes – UEFA, mas também as suas federações nacionais – para criarem uma Superliga europeia fechada, baseada na noção de que se são eles que correm todos os riscos financeiros, por exemplo com salários, terão de ter muito mais controlo sobre as receitas geradas, que a UEFA depois distribui a seu bel-prazer. O projeto, como está, é desastroso para o futebol tal como o conhecemos. Resta-nos a todos esperar que não fique assim e que seja possível encontrar um compromisso a meio caminho. Certo é que depois de hoje nada será como dantes.
Para hoje está marcado o Comité Executivo da UEFA, na sequência do qual se espera que seja anunciada a reformulação da Liga dos Campeões, com aumento do total de jogos para todos os participantes. Mas os rebeldes querem mais. E nem sequer se trata da certeza de admissão vitalícia, porque na verdade serão sempre raros os anos em que ficam de fora. Poderia tratar-se de um aumento substancial do número de jogos: o projeto da UEFA prevê dez jornadas na fase de grupos, enquanto que a Superliga prevê dois grupos de dez equipas, com 18 jogos para cada uma, antes de os oito melhores entrarem no play-off. Mas do que se trata mesmo é de distribuição de receita. A pandemia levou presidentes como Florentino Pérez a procurar outras fontes de receita, de modo a poderem continuar a pavonear-se no mercado, e levou-os a concluir que o sistema atual não serve. Porque são os grandes clubes que mais investem, que correm mais riscos financeiros, enquanto que a UEFA – que arrisca sempre zero – é que recebe o bolo. É fácil de entrar na cabeça dos rebeldes: se na altura de dividir a receita houver menos bocas para alimentar, cada uma recebe mais.
Isso, a longo prazo, é um erro catastrófico, mas, como dizia John Maynard Keynes, “a longo prazo estaremos todos mortos”.
Foi por isso que os grandes clubes criaram a tal associação. Nela estão, para já, três clubes espanhóis – Real Madrid, FC Barcelona e Atlético Madrid –, cinco ou seis clubes ingleses – Manchester United, Liverpool FC, Arsenal, Chelsea, Tottenham e, talvez, Manchester City, que foi convidado mas estará renitente – e ainda três italianos – Inter, Milan e Juventus. Por mais que se esforçassem, os rebeldes não conseguiram ainda convencer o Bayern Munique e o Paris Saint-Germain, que também foram convidados. A ideia é fazer uma Superliga anual com 20 participantes – os 14 fundadores e seis convidados anualmente – e dividir os quatro mil milhões de euros de receita gerada por todos, sem intermediação da UEFA, que guarda parte do bolo para ela e distribui umas migalhas por clubes de outros países. O plano garante, logo à partida, mais de 150 milhões de euros anuais a cada fundador, com eventualmente quase outro tanto dependente de resultados. É tentador e, numa lógica puramente capitalista, pode até dizer-se que é justo. Mas a verdade é que pode ser catastrófico e já tem contra gente de muito peso – além das principais Ligas e Federações, que naturalmente já perceberam que assim vão perder uma enorme fatia de mercado televisivo e, por isso, dizem que proibirão os clubes secessionistas de participar nos campeonatos nacionais, até Emmanuel Macron e Boris Johnson, o presidente de França e o primeiro-ministro de Inglaterra, se manifestaram já contra o plano.
Quem me acompanha sabe que acho a ideia de uma Superliga inevitável, porque o paradigma já deixou de ser nacional para ser Europeu – da mesma forma que nos anos 30 do século passado deixou de ser regional para ser nacional. Numa perspetiva de interesse do futebol português, sou mesmo a favor de uma Superliga aberta, com subidas e descidas, à qual se aceda por mérito. É a única forma de ter os nossos clubes a comer à mesma mesa que os grandes, a partilhar o mercado “core” com eles. Enquanto as coisas continuarem como estão, os grandes terão sempre o maná que é a receita gerada por uma Premier League, por uma Bundesliga, por uma La Liga ou por uma Série A, enquanto que nós andamos às raspas debaixo da mesa, a ver se caiu alguma coisa que a nossa Liga possa aproveitar. E tentamos salvar tudo com a entrada na Liga dos Campeões. Este projeto, além disso, pode até ser justo do ponto de vista do custo-benefício – de facto, a UEFA investe quase zero e tem todo o poder de angariação e distribuição de receita – mas é catastrófico na perspetiva da representatividade. A influência é norte-americana, das Ligas fechadas que os americanos fazem funcionar tão bem, mas basta ver que numa NBA, em 30 equipas, estão representados 23 estados, sendo que só Nova Iorque, a Florida, a Califórnia e o Texas têm mais de uma equipa. Este projeto, no qual, para já, três países concentram 60 por cento das equipas, é um desastre e não pode passar.
O dia de hoje será, nesse ponto de vista, extraordinariamente importante e, nele, a UEFA tem de perceber que tem muito poder mas terá de ceder algum se quer que as coisas funcionem. A ECA (Associação de Clubes Europeus), que já nos deu o maior motivo de risada de todo o processo, porque enquanto ela foi contra o projeto, o seu presidente, Andrea Agnelli (da Juventus) está a favor, pode patrocinar uma via de compromisso relativamente ao futuro, desde que consiga que a levem a sério – coisa que ainda está por ser provada. Porque a UEFA tem o poder de, através das federações nacionais, excluir os clubes rebeldes das respetivas Ligas, mas essa seria sempre uma decisão radical, que tiraria valor às competições. E atenção que não falo só de valor sentimental ou futebolístico – falo de valor negocial mesmo. Quem quereria os direitos televisivos das Ligas nacionais sem aqueles clubes? Ao mesmo tempo, a UEFA saberá que o seu próprio papel enquanto mediador é fundamental, que o futuro do jogo é mais europeu do que nacional, que o comboio não anda sem as locomotivas, mas que para ser verdadeiramente global, para angariar receita de todo o continente, esse comboio também precisa de arrastar as carruagens que representem mais adeptos e as aspirações de mais jovens jogadores. Precisa de levar todo o continente atrás – porque dificilmente adeptos russos, portugueses, belgas, holandeses sentirão o mesmo interesse por uma competição à qual os seus clubes não podem aceder.
É por isso que estou convencido que todos vão acabar por se sentar à mesa e chegar a um entendimento. E acho que ainda não se esgotou o tempo de intervenção para a defesa dos interesses de países como Portugal, aos quais convém a tal Superliga aberta.