A revolta dos chorincas
Há uma espécie de jogadores que entram nos nervos dos adversários. São os chorincas, que transformam o mais ligeiro toque numa ofensa corporal grave. Mas às vezes impõem-se pelas razões certas.
Muito antes de ter sentado Marafona, no golpe de génio com que fez o 2-0 para o Sporting e trouxe à memória de quem via o golaço de letra que já tinha marcado em Alvalade ao Boavista, Nuno Santos já estava a ser visado pelo público de Paços de Ferreira com assobios a cada vez que tocava na bola. A razão foi um lance logo aos 3’, em que Juan Delgado tentou disputar-lhe uma bola junto à linha lateral e lhe pisou, de facto, os dedos do pé esquerdo, motivando um salto imediato do canhoto leonino para o relvado e um grito lancinante que se impôs aos cânticos vindos da bancada e entrou em casa de todos os que viam o jogo pela TV. Felizmente estava tudo bem com o pé de Nuno Santos – como ele mais tarde mostraria no chapéu que fez a Marafona –, mas os adeptos da casa é que não gostaram daquilo que entenderam ser fita, apenas para motivar a ação disciplinar do árbitro ao lateral chileno. Há jogadores que são assim, que vivem ali permanentemente na fronteira da provocação, seja porque são chorincas por natureza, porque entendem que podem tirar benefícios desportivos da queixa ou porque são apenas manhosos. Nuno Santos não é caso único e até pela tentação de ser politicamente correto posso juntar-lhe Otávio, o médio do FC Porto que tanto se impõe pela capacidade de luta e pela visão de jogo que lhe permite soltar passes de rotura que só a cabeça dele vê em antecipação, como se rebola no relvado assim que leva um toque no peito ou no abdómen, ou Rafa, que tanto mostra uma velocidade em condução que o torna uma arma temível em contra-ataque como é capaz de dar três voltas no ar na eventualidade de ser tocado por um adversário, quase parecendo que está a tentar seduzir um qualquer júri de um concurso de patinagem artística. “Five-seven, five-eight, five-six; fünf-Komma-sieben, fünf-Komma-acht, fünf-Komma-sechs”, ouço imediatamente na minha cabeça, voltando ali às noites de semana e à agenda que a falta de recursos e a Eurovisão impunham à RTP daquele final de década de 70, só me faltando as imagens dos casais de patinadores ainda ofegantes no brilho dos seus fatos de lantejoulas. E, no entanto, os três são extraordinários jogadores, como se viu nos últimos dias. Otávio fez um golaço, num tiro violento e certeiro, a colocar o FC Porto na final da Taça de Portugal, depois de ter sido um modelo de trabalho a meio-campo durante 120 minutos. Rafa impôs a sua velocidade para correr dezenas de metros com bola antes de bater Matheus com toda a frieza e fazer aquele que bem pode vir a revelar-se o golo do título para o Benfica. E Nuno Santos teve a clareza mental e o rasgo de inspiração para, deixado em boa posição para finalizar por um passe de Trincão, gerir o tempo e o espaço na perfeição. Marafona estava a fechar-lhe o ângulo e a chegada iminente do central Nuno Lima impunha-lhe alguma celeridade no remate, mas o ala leonino, que tem ainda mais queda para os grandes golos do que para chorar faltas e cartões, esperou aquele instante certo, o instante em que Lima ainda não lhe tinha cortado o caminho e em que Marafona já estava sentado, para lhe picar a bola por cima num vistoso chapéu. A celebração do golo, que incluiu um aceno aos adeptos da casa, radicalizou ainda mais as hostes, prolongou o coro de assobios e motivou até um ralhete de Gaitán, de quem Nuno Santos tinha sido suplente no Benfica. Mas daqui a uns anos disso não vai sobrar nada. Os chorincas podiam ser diferentes? Podiam. Deviam. Fariam do futebol um lugar melhor se assim fosse. Mas daqui a uns anos ninguém vai lembrar-se disso e até os que assobiaram ontem poderão dizer: “Eu estava lá, no estádio, no dia em que o Nuno Santos sentou o Marafona”.
Uribe e o mercado do FC Porto. Matheus Uribe, o médio colombiano que acaba contrato com o FC Porto, vai sair no final da época a custo zero, aparentemente para assinar pelo Al Sadd, do Qatar. Junta-se assim a Marcano (que uns anos depois de sair nessas circunstâncias voltou), Herrera, Brahimi, Aboubakar, Marega ou Mbemba no lote de jogadores talentosos que os dragões perderam sem qualquer compensação financeira, um lote ao qual escapou por pouco Corona, vendido em saldo seis meses antes do fim do contrato, quer tenha sido para recuperar parte do investimento ou, como parece mais provável, para livrar Conceição da influência que ele tinha naquela altura no grupo. Aqui chegados, o mais normal é que se culpe quem gere o mercado do clube, seja por não ter renovado os contratos atempadamente ou por não ter vendido o passe dos jogadores um ano antes, de forma a receber algum dinheiro pelas saídas. As coisas, porém, nunca são assim tão simples. Geralmente, os adeptos “gerem” o mercado dos seus clubes pensando apenas numa perspetiva – a do emblema. Mas o mercado é a soma dessa perspetiva à dos jogadores, dos seus agentes e dos clubes potencialmente interessados. Pode até discutir-se se teria sido boa ideia para o FC Porto transferir Uribe há um ano, dessa forma abdicando do seu concurso nesta última época mas recebendo algum dinheiro em vez de o ver sair a zeros. Mas o que essa discussão não inclui, nunca, é o interesse do jogador. E Uribe? Estaria ele interessado em sair há um ano, a um ano de poder ganhar o jackpot com um contrato feito como jogador livre? E os agentes? Quereriam eles facilitar a transferência há um ano, a troco dos dez por cento da praxe, em vez de virem a ganhar mais agora, com a chamada transferência a “custo zero”? E os clubes interessados? Iam pagar 15 milhões de euros por ele há um ano quando podiam atrair o jogador por menos agora? O problema nestas perdas de jogadores por parte do FC Porto não está na gestão de mercado, mas sim na génese. Se o FC Porto vai contratar jogadores já feitos a mercados periféricos mas onde se paga muito bem, como é o caso do mercado mexicano, fica a saber imediatamente uma coisa: caso eles tenham sucesso, dificilmente conseguirá renovar-lhes o contrato, porque para os atrair já há que dar-lhes algo próximo do teto salarial. A contratação de Uribe – nove milhões e meio de euros pagos ao América – nunca foi feita para ganhar dinheiro. Foi para dar rendimento em campo. No mesmo Verão de 2019, o FC Porto trouxe outro jogador do América. Foi o guarda-redes Marchesín, por quem pagou 7,7 milhões de euros e que, depois de ter sido importante no título de 2020 foi empurrado para o banco pela ascensão de Diogo Costa. Marchesín foi vendido ao Celta, por um milhão de euros, no Verão passado. Mas alguém é capaz de dizer que a gestão do dossier Marchesín foi melhor do que a do dossier Uribe?
Só mais um drible. Rodrygo marcou os dois golos que deram ao Real Madrid mais uma Taça do Rei (2-1 ao Osasuna), mas a estrela da noite foi Vini Jr. Tanto o primeiro como o segundo golo nasceram em arrancadas de Vini em direção à linha de fundo, primeiro a dar largura bem junto à linha lateral esquerda, depois a meter aquilo que falta a quase todos os dribladores, que é velocidade e noção. Porque uma coisa é a arte de esconder a bola e fazê-la aparecer noutro sítio, mas ganhar apenas o espanto de quem vê com a manobra. Outra é criar situações reais de desequilíbrio – para o que é preciso, lá está, velocidade a explorar o espaço que o drible pode inventar e noção do momento em que já não se ganha nada com outro drible e o melhor a fazer é soltar a bola. Rodrygo, no sábado, teve sobretudo que fazer o que fizemos todos, que foi ter calma e esperar que Vini acabasse o seu número de ilusionismo. Na primeira vez, o compatriota deu-lhe a bola para o remate vitorioso, que ainda desviou num defesa adversário antes de bater o guarda-redes Hererra. Na segunda, ainda teve de aguardar que o remate de Kroos lhe viesse parar aos pés para garantir a Taça. O troféu recebido por Benzema das mãos do rei Felipe teve Rodrygo como garante, mas Vini Jr como inspiração maior.
O Vinícios Junior é daqueles jogadores que apetece ver jogar, não gosto muito do Real, mas só pelo Vini apetece assistir os jogos