Viciados em não jogar
O FC Porto-FC Famalicão foi um grande jogo, mas do que se falou a seguir foi de uma hierarquia de insultos ou do precedentes a justificar maus comportamentos. É por isso que continuamos a fracassar.
O míssil com que Otávio colocou ontem o FC Porto na final da Taça de Portugal, no último dos 120 minutos da segunda mão da meia-final, merecia ser o tema do dia de hoje para quem se interessasse por futebol neste país, como o mereceria igualmente o recital dado durante 100 minutos pelo FC Famalicão de Ivan Jaime. A questão é que Portugal é um país viciado em não-jogar, atento a tudo menos ao jogo. E essa é uma peçonha que alastra. E que ajuda a explicar a razão pela qual podemos ter os Famalicões, os Aroucas, os Rio Aves, os Casas Pias, os Vizelas ou os Chaves, mas fracassamos sempre que é preciso mostrar futebol longe do lixo que é a nossa zona de conforto. Isto verifica-se a todos os níveis, desde o relvado aos gabinetes e aos fóruns de discussão. Foi muito por saber que as indiscutivelmente boas equipas que temos no segundo patamar – logo depois dos grandes – acabam por sofrer de recaídas que, ontem, no Futebol de Verdade, depois de fazer o elogio ao futebol do FC Famalicão, apontei para 95 por cento de probabilidades de vermos o FC Porto na final. Durante o jogo, o assunto foi tema de conversa no meu servidor de Discord, porque alguns dos subscritores que por lá estão se meteram comigo a esse respeito. Na conversa que fomos mantendo ali, cheguei a fazer evoluir essas percentagens para 60/40, ao intervalo do prolongamento, mas só para voltar a aumentar o favoritismo portista assim que Manuel Mota deu ordem para se jogarem os derradeiros 15 minutos, nos quais os comandados de João Pedro Sousa deixaram emergir o tão português vício de não-jogar, na altura já a pensar no desempate por penaltis. No fim do jogo, contudo, do que se fala é do insulto de Colombatto a Pepe, do festejo de Sérgio Conceição na cara do treinador rival, quando isso deviam ser temas de lana-caprina, resolvidos com um estalar de dedos e jamais merecedores de um segundo do espaço mediático. O médio argentino chamou “macaco” ao defesa luso-brasileiro? Ouçam-se os áudios e, se o fez, castigue-se. O treinador do FC Porto mostrou a sua falta de respeito pelos vencidos ao dirigir-se ao banco adversário para festejar o golo que colocava a sua equipa no Jamor? Por isso mesmo viu cartão vermelho e será castigado. Ponto final nas conversas! Mas não aqui, neste país viciado em não jogar. Aqui, o que interessa é fazer uma hierarquia dos insultos entre os jogadores, perceber quais são aceitáveis e quais não o são. Se se pode chamar “filho-da-puta” mas não se pode chamar “macaco”. É debater se a falta de educação de Conceição é mais ou menos defensável, porque antes do golo de Otávio já Ivan Jaime tinha festejado o seu próprio golo virado para os adeptos da casa, ainda por cima de punhos cerrados, porque Colombatto tinha chamado “macaco” a Pepe ou até porque João Pedro Sousa tinha dito que a final do Jamor seria o jogo da época para a equipa que dirige. É também por isso, por se criar permanentemente este clima em que interessa tudo menos o futebol, que depois os nossos Famalicões, os nossos Aroucas, Rios Aves e Casas Pias, os nossos Vizelas e os nossos Chaves, falham quando são chamados a subir de patamar. Mas disso ninguém quer saber, porque quem debate e quem decide o faz sempre a partir da perspetiva dos grandes, a tentar encontrar explicações e justificações aceitáveis até para aquilo que é inexplicável e injustificável. Este é o buraco em que estamos. E é um buraco do qual nunca sairemos por meios convencionais.
Jaime e Otávio. Mas falemos do jogo. Ontem, o FC Famalicão foi quase sempre melhor do que o FC Porto. João Pedro Sousa fez de Dobre a sua peça-chave, mandou-o baixar para segundo lateral-direito, em acompanhamento a Galeno, assegurando superioridade da sua última linha face ao ataque dos dragões. E depois tinha um meio-campo rápido a pensar e a executar, um par de médios rotativo, placa giratória capaz de ligar sempre com o extraordinário Ivan Jaime, que fingia aparecer por fora mas vinha sempre dentro dar linhas de passe em conjunção com Ivo Rodrigues. O jogo apoiado dos visitantes, demasiado conhecedores do valor da bola para a darem ao desbarato, dificultou a tarefa a um FC Porto que voltou a parecer em crise de rendimento – mas que no fim voltou a ganhar, em boa parte porque, exceção feita a Sanca, ninguém que os visitantes tenham feito sair do banco acrescentou alguma coisa, em grande parte também porque no campo estava Otávio. O médio luso-brasileiro já tinha sido dos que mais lutara contra a inconsistência da equipa, oferecendo saída de bola junto aos centrais ou abrindo na direita. No fim, ficará na história desta edição da Taça de Portugal graças a um tiro indefensável. A bola não lhe apareceu fácil, mas estava mesmo a pedi-las, num misto entre o saltitante e o resvalante. Otávio deu-lhe com alma, com a parte de fora do peito do pé direito, e ela só travou nas redes, depois de entrar com violência no ângulo superior da baliza de um Luís Júnior que mesmo que não estivesse já a pensar nos penaltis nunca podia lá chegar.
Reis no Norte. A Guerra dos Tronos tinha uma peculiaridade em torno da família Stark, que ao longo das sucessivas gerações ora via os seus líderes proclamar-se “Rei do Norte” ou “Rei no Norte”. Ontem, o SSC Nápoles, a milhas a melhor equipa italiana desta época, foi feito Rei no Norte, porque foi em Udine, num Friuli que é quase mais austríaco do que italiano, que os napolitanos colocaram um ponto final na conquista do seu terceiro scudetto, o primeiro sem Maradona. Não estão assim tão longe os tempos em que as equipas do sul de Itália tinham de suportar tarjas com dizeres como “Lavatevi!” [lavem-se!”] sempre que iam jogar ao Norte do país, porque se há na Europa uma nação com uma profunda cisão entre um norte dos serviços e da industrialização e um sul da agricultura e das mafias essa nação é Itália. Ao contrário do que aconteceu no final da década de 80, porém, o ressurgimento do sul campesino não foi conseguido à custa de um rei-sol, como Diego, numa equipa eminentemente operária, como foram as construídas por Ottavio Bianchi e Alberto Bigon em cima da solidariedade de dez e do brilho de um. O SSC Nápoles de Luciano Spalletti é a mais lustrosa das equipas da Serie A, porque tem um treinador com filosofia atacante. O seu futebol monta-se na aura goleadora de um africano contratado a peso de ouro, como é Victor Osimhen, e na criatividade de um georgiano surpreendente, como Kvisha Kvaratskhelia. Mas não pode falar-se desta equipa sem mencionar o guarda-redes Meret, o capitão Di Lorenzo, a dupla de centrais terceiro-mundista formada pelo coreano Kim e pelo albanês Rrahmani, um meio-campo de vocação industrial e minimal-repetitiva constituído por Lobotka, Anguissa e pela criação controlada de Zielinski. E há um português, o alentejano Mário Rui, lateral de Sines capaz de meter a eficácia na discrição.
Penso que o Rhamani é bósnio