Uma história de negação
O Leverkusen, a equipa mais excitante da Europa neste momento, é uma história de várias negações. Nega os paradigmas de sucesso habituais e leva-nos a acreditar que o dinheiro não compra tudo.
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O Leverkusen de Xabi Alonso foi o primeiro campeão matematicamente seguro da Europa que conta, criando uma lenda de superação que na verdade é uma história de negação. Esta Bundesliga ganha pela equipa da Bayer a cinco jornadas do fim da prova começa por negar a idiossincrasia do clube, que até os próprios adeptos conhecem por “Vizekusen”, em alusão ao facto de nunca terem podido conquistar a saladeira e de já várias vezes terem claudicado à beira do objetivo. Nega ainda a lógica alemã de propriedade dos clubes de futebol por parte dos sócios, ou membros, uma vez que o Leverkusen é uma das poucas exceções à regra 50+1, que impede o domínio empresarial sobre os emblemas. Neste sentido, porém, nega também o racional predominantemente financeiro do futebol atual, porque a equipa da Bayer se impôs na corrida a um Bayern Munique que tem três vezes o seu orçamento e sem gastar muito na balança de transferências, o que ajuda a explicar o facto de a empresa-mãe entrar só com 25 milhões de euros anuais para as contas. E nega, por fim, o paradigma plástico de sucesso que o futebol de topo quer impor-nos, quando o treinador assumiu, antes mesmo de ter conquistado o título alemão, que não vai sair já em busca de vias mais rápidas de acesso a títulos mais impactantes, optando antes por ficar ali, para usufruir do que construiu durante pelo menos mais um ano.
Xabi Alonso chegou ao Leverkusen em início de Outubro de 2022, entre duas partidas com o FC Porto para a Liga dos Campeões. O clube já tinha perdido a primeira, no Dragão, ainda com Gerardo Seoane aos comandos, e perdeu a segunda também, em casa. O espanhol apanhou a equipa em penúltimo lugar da Bundesliga, ganhou na estreia ao frágil Schalke, mas após três empates e outras tantas derrotas nos primeiros sete jogos entrou no mês de Novembro sem hipóteses de qualificação na Champions e ainda abaixo da linha de água no campeonato. A recuperação até ao sexto lugar final foi notável de firmeza nas ideias que tentava incutir e incluiu ainda uma presença nas meias-finais da Liga Europa que esta época está a um jogo de pelo menos repetir – senão mesmo superar. O Leverkusen podia ganhar ou perder, mas não cedia numa coisa: na ideia. Era aquilo que de mais próximo pode haver de uma equipa de treinador, comandada por uma escolha improvável: Alonso tinha subido de divisão com o Sanse, a segunda equipa da Real Sociedad, mas da mesma forma que subira num ano descera logo no seguinte. Nele, os executivos do Leverkusen não viram currículo: viram uma liderança tranquila mas firme, dada pelo exemplo até no campo de treinos, a mesma liderança que ele já assumia nas equipas em que tinha jogado, como por exemplo o Bayern de Pep Guardiola. E viram uma ideia de jogo de posse que lhes agradava.
Passaram 18 meses desde a chegada de Alonso e o Leverkusen já contrariou os cânticos que ouvia da parte dos adeptos de outros clubes mais poderosos: “Nie deutscher Meister... Ihr werdet nie deutscher Meister!” [“Nunca serão campeões alemães”]. O palmarés do clube resumia-se até aqui a uma Taça UEFA, ganha em 1988, com Erich Ribbeck, e uma Taça da Alemanha, em 1993, debaixo das ordens de Dragoslav Stepanovic. Em 2000, nasceu a lenda do “Vizekusen”, internacionalmente anglicizada para “Neverkusen”, quando a equipa liderada por Christoph Daum chegou à última jornada da Bundesliga na frente mas não foi campeã. Bastava-lhe nesse dia empatar no campo do SpV Unteraching, que seguia tranquilamente a meio da tabela, mas perdeu por 2-0 – e o primeiro golo foi marcado na própria baliza por Michael Ballack, a estrela da equipa. Haveria forma mais poética de perder? Dois anos depois, ao segundo lugar na Bundesliga, o Leverkusen somou ainda a derrota na final da Liga dos Campeões, com o Real Madrid. A Bundesliga desta época foi a primeira vitória desta equipa, a vitória contra um DNA feito de derrotas épicas. Para ganhar, este ano, o Leverkusen de Alonso não teve só que ser melhor do que os outros. Teve de ser muito melhor do que os outros. É a única equipa invicta nas Ligas de topo da Europa – soma 38 vitórias e cinco empates em 43 jogos – e parte para o último mês e meio de temporada como favorita para uma tripleta histórica, pois está a um pequeno passo das meias-finais da Liga Europa, prova na qual poderá agora concentrar-se, e vai jogar a final da Taça da Alemanha com o FC Kaiserslautern, que está a lutar para não descer da segunda para a terceira divisão.
A equipa joga um futebol de autor, disposta num 3x4x2x1 com nuances muito interessantes na articulação dos alas com os atacantes e na movimentação ofensiva dos centrais exteriores, tantas vezes laterais em posse. Perdeu durante três meses, por lesão, a seta ofensiva que lhe fez as alegrias no início da época, o nigeriano Victor Boniface (18 golos e dez assistências), mas socorreu-se de outros atributos. Apareceram os golos do checo Patrick Schick (onze), mas sobretudo a articulação ofensiva entre Florian Wirtz e os dois alas, Jeremie Frimpong e Alex Grimaldo, todos acima do duplo-duplo esta época. Frimpong contribuiu com 12 golos e dez assistências a partir da direita, Grimaldo vai com onze golos e 16 passes decisivos a sair da esquerda. Wirtz, o cérebro atacante da equipa, autor de um hat-trick na goleada ao Werder Bremen, ontem, já tem 17 golos e outras tantas assistências. Os quatro mostram a excelência da visão articulada entre o CEO, o espanhol Fernando Carro, que o clube recrutou ao grupo Bertelsmann, e o diretor-desportivo, Simon Rolffes, bem como o apurado critério de Kim Falkenberg, um antigo defesa-central de nível médio-baixo que é excelente como chefe de recrutamento. Só graças a essa visão articulada foi possível construir uma equipa vencedora a gastar menos do que o Bayern pagou só por Harry Kane. Boniface custou 20,5 milhões, vindo da Union Saint-Gilloise. Grimaldo chegou a custo zero, ainda que com um salário de topo para a Bundesliga. Stanisic, uma das chaves para o desdobramento ofensivo da equipa a partir da posição de central-exterior, foi emprestado pelo Bayern. E o suíço Granit Xhaka chegou do Arsenal por 15 milhões para solidificar tudo. É ele a personificação do treinador no campo, o homem que liga todos os setores: é o jogador com mais passes conseguidos nas Big Five esta época: 2814, mais 80 do que Rodri.
Para o futuro do Leverkusen ser muito melhor do que o presente serão necessárias mais uma série de histórias de superação. E é altamente improvável que isso venha a acontecer. A Bayer está em dificuldades, em plano descendente muito inclinado na bolsa, o que torna difícil que venha a incrementar o investimento na equipa. Esta terá de voltar a fazer receita no mercado, como já fez por exemplo com Kai Havertz, a sua venda mais cara de sempre, que saiu por 80 milhões para o Chelsea em 2020. Há muitos candidatos a “financiador” do futuro do clube e é normal que Wirtz, contratado por 200 mil euros aos sub17 do FC Colónia, na mesma altura, seja o mais forte de todos. O atacante de 20 anos já está avaliado acima dos 100 milhões e tem mais três anos de contrato. Vai ser titular na seleção alemã no próximo Europeu e poderá sair basicamente para onde quiser. Falta perceber se, como Alonso, preferirá ficar e usufruir.