Os donos da bola: Alemanha (2024)
Tanto a Regra 50+1 como as suas exceções estiveram em perigo na sequência da intervenção de um Comité Federal contra a cartelização. Mas para já ficará (quase) tudo na mesma.
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O futebol alemão é especial no que toca à propriedade dos seus clubes – e tudo indica que vai continuar a sê-lo. Todo o edifício regulamentar que obriga a que os clubes profissionais sejam controlados pelos seus sócios ou membros, a famosa Regra 50+1, esteve em risco de ruir no âmbito de dois processos, um primeiro para ver se dessa forma não se estaria a ir contra as leis de livre concorrência e um segundo para se determinar se as três exceções historicamente aprovadas – o Leverkusen da Bayer, o VfL Wolfsburg da Volkswagen e o TSG Hoffenheim de Dietmar Hopp – podiam continuar e em que termos. Em Julho, o Comité contra a Cartelização do Governo Federal alemão deliberou a favor da manutenção da regra no futebol profissional, determinando ainda que não serão aprovadas mais exceções no futuro e que as atualmente existentes obrigarão os beneficiários não só a criar mecanismos que favoreçam um maior envolvimento dos seus membros como a pagar compensações financeiras pela possibilidade de terem maioria detida por investidores no seu capital. Acabou por sair derrotada – para já – a fação que acolheria de braços abertos a extinção da regra, liderada pelo próprio Bayern Munique, clube que tem sido dominador no panorama nacional mas vê nesta limitação uma das razões para ter deixado de ser tão competitivo internacionalmente.
“Seríamos totalmente a favor da queda da Regra 50+1, porque estamos a ficar para trás no plano internacional”, afirmou em Março Uli Höness, presidente honorário do gigante bávaro. “Além de que essa seria a única forma de dar aos clubes mais pequenos uma oportunidade de serem competitivos”, completou Höness, numa altura em que a regulamentação estava a ser examinada a nível federal. O Comité Contra a cartelização já tinha classificado esta Regra 50+1 como inofensiva no plano da lei anti-trust, sobretudo por entender que ela persegue objetivos de política desportiva. Isso aconteceu em 2021. “As regras da lei anti-trust aplicam-se aos desportos profissionais e especialmente às associações desportivas”, disse na altura o presidente deste comité, Andreas Mundt. “Limitar a participação nas Ligas profissionais a clubes detidos pelos membros continua a ser uma restrição às regras de livre competição que requer uma legitimação política desportiva, mas, no geral, os compromissos assumidos pela Liga parecem ser adequados para dissipar as nossas preocupações”, disse agora Mundt, que à data do envio da proposta de alteração da lei para os tribunais, que terão a última palavra. E quais foram esses compromissos? Que o clube e os seus membros terão garantida a sua representação nas sociedades que gerem o futebol, que não poderão mudar de região e que as suas contas não poderão ser “salvas” por pagamentos especiais feitos pela empresa-mãe. Além disso, não só ficou desde já proibida a criação de novas exceções – embora elas possam ser geradas de forma mais ou menos criativa, como a adotada pelo RB Leipzig para driblar a regra – como o milionário da informática Dietmar Hopp, que era dono do TSG Hoffenheim, já devolveu em Novembro as suas ações ao clube, para que este volte a viver no âmbito da regra.
A manutenção da regra, criada em 1998, continua a fazer do futebol alemão um caso único na Europa do capital. Estipula esta regra – da qual foram isentados logo o Leverkusen e o VfL Wolfsburgo, cujas ligações à Bayer e à Volkswagen duravam há décadas – que os clubes podiam converter-se em sociedades comerciais mas, para competirem na Bundesliga, tinham de ter mais de 50 por cento dos direitos de voto nas respetivas assembleias. Todo o sistema na Alemanha está construído em torno do conceito de “membros”, uma espécie de sócios. O Bayern Munique, por exemplo, tem cerca mais de 300 mil, todos a contribuírem com valores que variam entre os 35 e os 65 euros anuais para a sustentabilidade financeira de um clube que até abriu 25 por cento do seu capital a grandes empresas. Mas há casos como o do RB Leipzig, clube inventado pela Red Bull para ser uma das extensões do projeto futebolístico global da marca de bebidas austríaca, que colocava a anuidade para membros a preços tão proibitivos que mais valia dizer que os não queria. E a verdade é que não queria mesmo: só quando chegou à 2. Bundesliga foi forçada a chegar a acordo com a organização de forma a definir limites para a intervenção dos donos.
A intenção da Bundesliga é a de evitar que os interesses comerciais se sobreponham aos desportivos – algo que se alguém pode fazer são os alemães, tão amplo é o seu mercado interno. O resultado é que, ao contrário do que acontece nos outros grandes campeonatos do futebol europeu, não há investidores estrangeiros nos principais clubes do país. Ou melhor: não devia haver. Mas toda a gente continua a fechar os olhos ao que se passa em Leipzig. Fique então a saber, nos próximos 18 parágrafos, como é o tecido societário dos clubes da Bundesliga.