Homenagem a um revolucionário
Sven-Goran Eriksson operou a penúltima revolução de que há memória no futebol nacional, trazendo-o para a modernidade. E foi, ao mesmo tempo, beneficiário e vítima do tempo em que se tornou influente.
Palavras: 1654. Tempo de leitura: 8 minutos.
Sven-Goran Eriksson foi um pouco um golpe de sorte. O de, num Mundo que não tinha nada que ver com o de hoje, se ouvirem as pessoas certas nos momentos certos sem se saber que eram as pessoas certas e os momentos certos. O de se arriscar. O treinador sueco, que ontem, no intervalo do jogo com o Olympique Marselha, foi merecidamente homenageado pelo Benfica e pelos jogadores que ali orientou, chegou a Portugal em 1982, depois de ganhar a Taça UEFA com o IFK Gotemburgo, porque Fernando Martins, o presidente do clube, arriscou e aceitou o conselho de Borje Lantz, um ex-jornalista e então empresário sueco que se fixara em Cascais depois de ter trocado a Escandinávia pelo Brasil, no final da década de 50. Lantz sugeriu Eriksson e, contra a opinião do resto da direção, Martins disse que sim, da mesma forma que dois anos depois veio a dizer que sim a Pal Csernai e mais à frente o fez também com Ebbe Skovdahl. Era um Mundo diferente, um Mundo no qual havia menos conhecimento global e por isso ainda se arriscava muito no escuro. E era um Portugal diferente, um país cujo futebol Eriksson veio revolucionar. O sueco mudou tudo e ganhou. Protagonizou a penúltima revolução no futebol nacional – depois dele só houve mais uma, a de José Mourinho – mas não foi capaz de a prolongar no tempo e no espaço.
Para falar de Eriksson é preciso primeiro falar de Lantz, o “Agent 001” ou o “Mr 10 procent”, como ficou conhecido na Suécia. Lantz era jornalista no Mundial de 1958 e tão fascinado ficou com o futebol do Brasil que se mudou para lá. Aprendeu português, tornou-se amigo de Pelé e deixou o jornalismo para trás, tornando-se precursor na arte do negócio do futebol às costas do potencial do escrete. Assim que pôde, passou a viver entre o Rio de Janeiro e o Guincho, de onde alargava a influência ao sul da Europa. Foi ele que, vendo Martins interessado em mudar de treinador, depois do húngaro Lajos Baroti, que tinha sido contratado por Ferreira Queimado, antes da transição na liderança do Benfica, ter passado de uma dobradinha em 1981 a zero títulos em 1982, lhe sugeriu o técnico que ganhara a final da Taça UEFA pelo IFK Gotemburgo. Baroti tinha 67 anos, tinha sido selecionador húngaro nos Mundiais de 1966 e de 1978 e era um treinador do género em que os presidentes portugueses apostariam naqueles anos de sede de liberdade que marcaram o pós-25 de Abril mas nos quais se sentia ainda muito cheiro a mofo do antigo regime. Contratavam-se treinadores experientes e que, das duas uma, ou tinham um currículo invejável em países onde o dinheiro não entrava – e onde, por isso, conseguíamos entrar nós – ou eram relativamente desconhecidos mas vinham dos mercados mais importantes, como o inglês. A primeira chegada de John Mortimore ao Benfica, em 1976, foi sintomática. Como Mário Wilson ia sair, o Benfica pediu um treinador à Federação Inglesa, e esta indicou-lhe um antigo defesa-central do Chelsea, então com 42 anos e zero experiência de comando de equipas de futebol. Era inglês...
Voltemos ao contexto imediato. O Benfica passou de Lajos Baroti, 67 anos e dois Mundiais no currículo, para Sven-Goran Eriksson, 34 e uma forma radicalmente diferente de ver o Mundo. Quando o sueco chegou a Portugal, por cá quase que se treinava para o futebol como para o corta-mato. O treinador era alguém que impunha distância, disciplina e punha os jogadores a correr pelos pinhais, na areia da praia ou a subir e descer bancadas. Mas Eriksson não era desse Mundo. Uma das primeiras medidas que tomou foi cancelar o estágio de pré-época nas montanhas. Mais tarde acabaria também com os estágios para os jogos em casa – e é curioso que a última revolução, a de José Maria Pedroto, no final da década de 60, passara muito pela sua instituição, que na altura eram precisos e faziam sentido. No plano futebolístico, fez da redução de um plantel que tinha mais de 40 jogadores a sua primeira prioridade – os grandes de Portugal contratavam muito para fortalecer as suas equipas de reservas e, sobretudo, para impedir os rivais de contratar e manter zonas de influência. E tratou de impor métodos de treino fundamentalmente com bola, de maneira a trabalhar a zona pressionante que era a imagem de marca dos treinadores suecos e a que os jogadores portugueses não estavam nada habituados.
Aquele Benfica tinha e podia reter talento – o mercado global não era sequer uma miragem – e Lantz deu uma ajuda, com a contratação de Glen Stromberg. Bons jogadores, a trabalharem de acordo com o que mandavam os padrões de modernidade, só podiam dar bons resultados: o Benfica ganhou o campeonato e a Taça de Portugal e chegou à decisão da Taça UEFA, a primeira final europeia de uma equipa portuguesa desde a Taça dos Campeões Europeus de 1968, 14 anos antes. Em toda a época, praticando um futebol vertical e físico como ainda não se via por cá, os encarnados perderam apenas dois jogos, por 1-0, com o Sporting em Alvalade em Janeiro e com o Anderlecht no Heysel em Maio. De caminho ganharam em Roma à equipa de Conti, Ancellotti ou Falcão e começaram a fazer falar de Eriksson na então poderosa Série A, que era quem punha e dispunha no mercado internacional. Foi nessa eliminatória com a AS Roma que Eriksson conheceu Niels Liedholm, além de seu adversário o mais credenciado dos treinadores suecos e um dos pais futebolísticos, por exemplo, de Arrigo Sacchi, que anos depois viria a criar o super-Milan. Na segunda época, Eriksson voltou a ser campeão, mas perdeu a Taça de Portugal e foi eliminado pelo Liverpool FC nos quartos-de-final da Taça dos Campeões Europeus.
Em 1984, seduzido pelo contrato que lhe ofereciam em Itália e até pela abordagem que lhe foi feita, quase digna de um filme de espionagem, com perseguição automóvel por parte de um funcionário da embaixada de Itália num táxi para lhe entregar o número de telefone do presidente Dino Viola, assinou pela AS Roma. Na sua autobiografia, Eriksson diz que quando falou no tema a Fernando Martins este “ficou transtornado” e procurou convencê-lo a ficar com a promessa de contratar mais e melhores jogadores, instigando nele um sentimento que era próximo do de traição. Por ocasião do centenário do Benfica, 20 anos depois, porém, o antigo presidente contou uma versão diferente. Que o sueco ganhava no Benfica 360 contos por mês, “muito menos do que os treinadores do FC Porto ou do Sporting”, explicou. E que em Roma lhe davam, nessa altura, cinco mil contos por mês, quase 14 vezes mais. “Ele quase chorava. Lembro-me de ele dizer ‘deixe-me ir, senhor Martins, que é a minha grande oportunidade’. E eu deixei, naturalmente”, relatou, sem ter a noção de que estava a falar de um dos últimos fenómenos pré-globalização que o futebol conheceu.
A inexistência ou total desregulação de um mercado global do futebol, que permitira que o treinador que tinha ganho a Taça UEFA por uma equipa sueca aparecesse em Portugal por uns trocos, foi também o que o levou, depois disso, a priorizar sempre o aspeto monetário nas decisões de carreira. Da mesma forma, ao contrário de Mourinho, por exemplo, que quando apareceu, já em contexto global, estava anos à frente da concorrência internacional, e por isso mesmo continuou a ganhar, também se pode argumentar que o peso de Eriksson foi o de trazer para Portugal uma modernidade que por cá não se conhecia e que, mesmo em Itália, era apenas uma tendência de cuja valia só a eclosão do Milan de Sacchi veio a atestar. Mas num contexto diferente, Eriksson já não era tão diferenciado. Quando voltou ao Benfica, em 1989, o sueco só tinha somado uma Taça de Itália ao palmarés. Vinha, no entanto, mais rico em experiência e prestígio – bem como na carteira, como é evidente. Já não era o jovem sueco com umas ideias diferentes – era o credenciado treinador em quem o agora presidente João Santos apostava para devolver o Benfica ao topo da Europa. E o que ele dizia era lei. Chegou à final da Taça dos Campeões Europeus em 1990 – mas a verdade é que já Toni o fizera em 1988 com a manta de retalhos que herdara de Skovdahl – e foi campeão em 1991. O futebol português mudara, no entanto. Pinto da Costa já levava dez anos à frente do FC Porto quando, em 1992, depois de um ano sem troféus, Eriksson voltou para Itália, desta vez para pegar na Sampdoria.
Eriksson tinha 44 anos. A revolução ficara lá atrás e os quase 30 anos de carreira que ainda lhe restaram tanto incluíram a conquista da Série A pela Lazio, em 2000, ou a honra de ser o primeiro estrangeiro a comandar a seleção inglesa (de 2001 a 2006, sem troféus, contudo), como passagens pouco gloriosas por projetos como o do Notts County, no terceiro escalão inglês, o da seleção das Filipinas ou o da equipa da polícia em Banguecoque. O que fizera dele um jovem fenómeno, que foi o facto de saber mais do que os outros num Mundo em que o conhecimento não fluía, deixou de o diferenciar quando ele deixou de ser jovem e, sobretudo, quando o conhecimento encontrou vias de ser partilhado. O que a vida de Eriksson deixa à vista é a contradição que era treinar no tempo em que ele o fez, a mesma contradição que leva a que tenha sido um dos três treinadores mais marcantes no último meio século em Portugal mas não possa depois ser considerado um dos 50 mais relevantes do mesmo período na história do futebol mundial.
Artigo espetacular, que há muito este SENHOR do futebol Mundial merecia 👏👏👏👏