Sinais da barbárie
Ver um árbitro no chão, a ser pontapeado depois de ser esmurrado pelo presidente de um clube, não é coisa que só possa acontecer lá longe, nos confins da Liga Turca. Os sintomas já cá andam.
Quando somos confrontados com imagens como as da agressão a Halil Umut Meler, o árbitro internacional turco que ontem levou um soco do presidente do Ankaragücü e, caído por terra, foi depois pontapeado na cabeça por um dos “chega’missos” que invadiram o campo atrás do líder, no final de um empate com o Caykur Rizespor, podemos até sentir-nos tentados a olhar para os incidentes como olhávamos para aquelas imagens que de vez em quando chegavam às nossas televisões, antes de a globalização no-las servir via YouTube, com tudo à pancada em sessões de parlamento de locais tão recônditos como as Filipinas. Vestimos o manto da autoproclamada superioridade civilizacional do Ocidente e decretamos: “Isto aqui nunca seria possível”. O problema é que não temos razão. Isto aqui não só seria possível como está cada vez mais perto de um dia vir a acontecer, que os sinais de barbárie que levam a este tipo de coisas vão-se acumulando também por cá. E nem será preciso fazer o teste do algodão que seria mostrar as imagens da agressão a Umut Meler a dez amigos para ver ao fim de quantos vem a resposta sacramental: “quem precisava de um tratamento destes era o...”, seguido do nome do árbitro que esteve no jogo da equipa dele no último fim-de-semana. Sei bem que uma coisa é dizer e outra, bem diferente, é fazer, que somos um país de brandos costumes e que o nosso futebol está cheio de dirigentes respeitáveis. Mas Faruk Koca, o presidente do Ankaragücü, que liderou esta carga em cima do árbitro, não o seria menos, como ex-deputado e fundador do Partido da Justiça e do Desenvolvimento – o mesmo do presidente Recep Tayyip Erdogan. Mais do que trazer-nos uma banalização destas superpersonalidades, de gente cujo poder excessivo, seja ele financeiro ou político, lhe permite ser quase inimputável, o que a modernidade nos trouxe foi a noção do que elas fazem de mal. Foi o caso, por exemplo, com Ivan Savvides, o oligarca próximo de Vladimir Putin que, como dono e presidente do PAOK, entrou em campo armado e rodeado dos seus guarda-costas para retirar a equipa de campo antes do final de um clássico com o AEK, em 2018, por se julgar prejudicado pela equipa de arbitragem. Ou mesmo, a um nível menos agressivo mas igualmente prejudicial, de Evangelos Marinakis, o poderoso dono do Olympiakos, que está na iminência de comprar o Rio Ave, que reagiu com desagrado ao momento em que a UEFA desaconselhou o empréstimo de árbitros por parte de outras federações à Liga grega para combater a suspeição de que era rodeada qualquer decisão por ali. “Foi o campeonato mais sujo da história”, acusou Marinakis, indo a ponto de alegar que a federação era um antro de “criminalidade organizada”. Portugal está longe de aí chegar? Pois não sei. Tal como na Grécia e na Turquia temos um ambiente sociológico que favorece a aglutinação de adeptos de todo o país em torno de três ou quatro emblemas. Marinakis está aí a chegar – e a possibilidade de negociação do capital das SAD abre portas a que venham mais destes poderosos inimputáveis. Já vimos gente com algumas responsabilidades a pedir a nomeação de árbitros estrangeiros para os clássicos, como era feito na Grécia (e contei a história com detalhe na edição grega dos Reis da Europa, aqui). Já passámos pelo sorteio dos árbitros – e ainda há quem o defenda... –, uma espécie de versão primitiva do algoritmo de inteligência artificial que os turcos usaram na época passada para nomear os juízes (e a história também está contada na edição turca dos Reis da Europa, aqui). Os nossos clubes já tiveram tanto sucesso no espalhar da narrativa de que são sempre eles os prejudicados, que quem quer que tenha a vontade de discutir futebol nas redes sociais é logo catalogado como “cobarde” ou como alguém que está vendido aos interesses de um clube – e não importa qual é, porque esta ideia lê-se de todas as cores, vinda dos exércitos informais de qualquer emblema. O caldo de cultura para que esta barbarie chegue ao nosso futebol de elite está criado. Continuar a viver em negação em nome do interesse em condicionar é quase tão criminoso como avançar em direção a um árbitro para o deitar ao chão.
O equilíbrio dado pelo lateral... A suspensão de António Silva, no jogo de hoje, contra o RB Salzburgo, permitirá perceber melhor as razões da adaptação de Morato a lateral esquerdo na equipa do Benfica. Sem António Silva, o que faria sentido era que o brasileiro derivasse para o centro, passando a ocupar aquela que é a sua posição natural. Mas, se até isso pode ser feito de duas formas diferentes – ou com Jurasek à esquerda, num quarteto mais clássico, ou com João Vítor à direita e a mudança de Aursnes para a esquerda, mantendo um central na linha –, há ainda uma terceira hipótese, que passa pela manutenção de Morato na posição em que vem jogando, entrando Tomás Araújo no onze. Da decisão tomada hoje por Schmidt vai sair alguma clarificação. O normal seria mesmo a entrada de Jurasek com Morato ao meio. Se isso não acontecer, das duas uma: ou o checo não conta mesmo e no Benfica alguém tem de começar a pensar em explicar muito bem explicadinhos os 14 milhões investidos na sua contratação, ou o treinador considera que para aguentar os desequilíbrios provocados pelo seu quarteto mais ofensivo precisa de um lateral mais contido, seja ele João Vítor ou Morato.
...e a vertigem dos extremos puros. No SSC Nápoles-SC Braga, pelo contrário, a lesão de Djaló, que com Banza tem sido o jogador mais influente nos guerreiros, vai adiar um pouco mais a definição da ideia de Artur Jorge. Este SC Braga tem sido tão marcado pela facilidade com que faz golos como pela dificuldade em impedir os adversários de os marcar e ainda procura o melhor compromisso entre o trio nuclear e os dois extremos. Qual a melhor versão? Com dois extremos puros e mais vertiginosos, como Djaló e Bruma, e depois um 10 capaz de ser mais segundo avançado do que terceiro médio, como Ricardo Horta? Ou com Horta a partir de um dos flancos, sacrificando um dos extremos, permitindo a entrada de um 10 mais equilibrado, como Pizzi ou até Zalazar? E depois, como se compõe a dupla atrás deste 10? Com dois tipos mais seguros, como Moutinho e Vítor Carvalho? Ou com um destes e um segundo médio que seja capaz de introduzir algum risco desde trás, como Al Musrati, André Horta ou Zalazar? O melhor SC Braga tem o futebol largo de Zalazar a meio-campo, mas depois pode não ser capaz de aguentar Bruma e Djaló em simultâneo. São as dores de crescimento.
O adeus de Petit. Petit fartou-se e demitiu-se do Boavista. O arranque poderoso da equipa de xadrez, que chegou a comandar a Liga (ainda fiz um Report sobre a equipa, que pode ver aqui), acabou por desvanecer-se entre os problemas, sobretudo financeiros, que a SAD atravessa, e que dificilmente lhe permitirão fugir do destino que lhe previ quando fiz os meus prognósticos para esta Liga (pode conferir o texto aqui). O Boavista começou a cair quando lhe aconteceu o que é inevitável ao longo de uma temporada e foi perdendo alguns elementos daquele onze-base que estava turbinado pelo cuspo das vitórias que somou a abrir a época. Petit podia ter aproveitado para sair em alta – e naquele início de Liga ainda me veio à memória a demissão de Luís Norton de Matos do Vitória FC, em Dezembro de 2005, com os sadinos em terceiro lugar na Liga mas já em dificuldades para cumprir com os jogadores que prenunciavam a crise que inevitavelmente veio a seguir. A diferença fundamental é que entre Petit e o Boavista há uma ligação também sentimental. Só que chega uma altura em que isso já não chega. Mais do que uma revolta, a saída de Petit do Boavista é uma declaração de impotência. Há coisas que, por mais que queiramos, não conseguimos fazer. Não subscrevo a ideia de que depois do treinador que agora se afastou será inevitavelmente o caos, que não acredito na existência de homens providenciais. Mas que a época do Boavista ainda pode piorar muito, disso não tenho dúvidas.