Segredos do melhor Portugal
A seleção fez em Varsóvia a melhor exibição em quase dois anos com Martínez. Isso deveu-se ao bom momento de alguns jogadores, mas também a duas decisões intimamente ligadas entre si.
Palavras: 1319. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
A seleção nacional fez na Polónia a melhor exibição do período-Martínez. O técnico catalão diz que não, que os últimos 45 minutos contra a França foram melhores, mas houve no jogo de Varsóvia algo que não se observara na partida de Hamburgo, que foi a objetividade e a capacidade de ir para o golo. Não é de os marcar, que isso é outra coisa. É de criar condições para que eles surjam – e foi isso que se viu na terceira jornada da Liga das Nações, nuns casos à conta de momentos excelentes de alguns jogadores, como Nuno Mendes ou Rafael Leão, noutros graças a movimentações mais bem trabalhadas, como as subidas de Bruno Fernandes para a posição de ponta-de-lança que Ronaldo abandona sempre no esforço de se associar à equipa, noutros ainda à conta de uma aposta ganha pelo selecionador, que foi a colocação de Rúben Neves no meio-campo, dando também mais protagonismo em início de organização a Bernardo Silva, neste caso a funcionar mais como um oito do que como o dez que trazia na camisola.
O funcionamento do corredor esquerdo, com Nuno Mendes a sair do lugar de defesa central esquerdo em início de organização para depois, em articulação com Leão, ser extremo ou até atacante interior, porque se um abre na linha o outro ocupa os meios-espaços entre corredor lateral e central, foi o que de melhor se viu na equipa. Mas nasceu em grande medida da capacidade dos jogadores – ainda que haja mérito de Martínez na criação da organização que finalmente trouxe Leão para a seleção (ando há mais de dois anos a dizer que o crescimento desta equipa depende da capacidade para tornar Leão importante). O entendimento entre Ronaldo e Bruno Fernandes também é muito fruto da habituação forçada do médio do Manchester United a zonas mais adiantadas do terreno, que é obra de Erik Ten Hag. Por falta de alternativas, ele até já ponta-de-lança foi no clube. Mas a somar a isso, no jogo de Varsóvia pareceu claro que era ele quem devia ocupar os terrenos onde tem de estar o avançado de referência quando este de lá sai – e Ronaldo sai muito. Gosto de ver Bruno Fernandes a jogar mais atrás, de onde ele possa ver o campo de frente, mas as coisas funcionaram muito bem e o médio não só assistiu Bernardo para o primeiro golo como fez mais três passes-chave (a dar origem a finalizações) e ficou a dever a si mesmo um par de golos que podiam ter tornado o resultado histórico.
Ora nesse estabelecimento de hierarquia na aproximação à área pode ver-se também a nova forma de articular o meio-campo, onde Bernardo Silva se aproximou de um médio centro mais associativo, como é Rúben Neves, dando-lhe sempre linhas de saída e ajudando a estabelecer a teia de passes que tornou infrutíferas as tentativas de condicionamento feitas pelos polacos. Se quiserem ver a equipa como um esquema tático de base, o Portugal de Varsóvia foi mais 4x2x3x1, ainda que um dos médios tenha tido chegada à área (Bernardo Silva), do que 4x3x3, com um médio a jogar sozinho atrás de dois criativos, como sempre vimos na associação de Bruno e Bernardo a um terceiro médio-centro. E é por isso que, caso contra uma Escócia mais física do que a Polónia, Martínez acabe por dar amanhã a posição de Rúben Neves a João Palhinha, poupado em Varsóvia, essa acabará por ser a única alteração de base na ideia de uma equipa que caminha para estabilizar princípios – as outras, que também existirão, serão meras trocas de nomes dentro do imenso jogo de pares e alternativas ao dispor de Martínez. Porque é diferente ter um médio mais associativo, bem mais ativo com bola, ou um jogador duelista, capaz de encostar o cabedal aos adversários e ganhar mais bolas divididas. Essa é, neste momento, aliás, a grande dúvida em torno da organização defensiva e ofensiva da seleção nacional e será sempre um erro encará-la na perspetiva de usar um médio mais forte na parte defensiva contra adversários mais fortes e outro mais capaz com bola contra rivais mais fracos. A começar porque se tivermos a bola por mais tempo defendemos menos. Mas teremos de defender na mesma.
Portugal estabilizou uma organização em que parte do 4x3x3 (ou do 4x2x3x1) mas defende com uma linha de cinco atrás, em 5x3x2, e ataca com uma linha de cinco na frente, em 3x2x5. Isto naturalmente leva a que os ocupantes de algumas posições tenham de mudar as suas missões consoante o momento do jogo. O extremo-direito é extremo-direito com bola mas defesa-direito sem ela. Martínez gosta de Pedro Neto para esse papel, insiste com ele, a ponto de ele andar a fazer mais minutos na seleção do que no clube, mas Francisco Conceição pode igualmente ser solução. Bernardo Silva talvez até pudesse fazê-lo. O selecionador disse em Varsóvia que ele não tem posição, que joga em qualquer uma, tanto por dentro como por fora, mas se por um lado isso era Martínez a ser Martínez – “Com papas e bolos...” –, se por outro é verdade que é possível ver o médio do City a partir da linha a a procurar o espaço interior para dar largura a um lateral ofensivo, já fará mais confusão – e será um desperdício das qualidades dele – tê-lo como o tal misto entre defesa direito e extremo puro e sempre aberto. Ora a peculiaridade do defesa-ala-direito leva, por arrasto, à posição taticamente mais complexa da equipa nacional, que é a de lateral-direito. A ponto de ser estranho que se lhe chame lateral-direito, porque quem joga ali nunca joga como lateral-direito: defende como central e ataca como um número 10, entre o extremo e o ponta-de-lança. Dalot faz bem o lugar, com mais dificuldades na vertente ofensiva, Cancelo também pode fazê-lo, com mais problemas a defender como central. Os princípios inerentes à função, contudo, dificilmente mudarão seja um ou o outro o escolhido para jogar ali.
Ao defesa-esquerdo já se pede uma complexificação bem diversa: que defenda como defesa-esquerdo, comece a atacar como central esquerdo e que depois também surja na frente, para explorar o abandono da largura por parte do extremo e criar superioridade numérica quando se torna o sexto homem ante equipas que usem linha de cinco atrás. Nuno Mendes é o encaixe perfeito para a missão e até ajuda noutra questão: tem o pé esquerdo que poderia faltar na saída caso atrás não jogassem Inácio ou Renato Veiga, os dois centrais canhotos da seleção nesta altura. Faz tudo de uma maneira que se torna difícil imaginar a equipa sem ele. Pode jogar por ali outro dos laterais presentes nesta convocatória? Pode, sim. Mas dificilmente funcionará da mesma maneira. Pode jogar Guerreiro? Também pode – e a falta de estatura dificilmente será problema, que a este jogador só se pede que ataque como central, não que defenda como tal. Mas é difícil imaginar seja quem for a aproximar-se do nível absurdo a que está neste momento o lateral do PSG. De qualquer modo, nenhuma alteração terá tanto peso no perfil da seleção como a do médio-centro – que é também aquela que parece suscitar as maiores dúvidas a Martínez. Porque uma coisa é jogar ali com Palhinha (ou Renato Veiga, que também faz o lugar). Outra é jogar com Rúben Neves (ou Vitinha ou João Neves, ainda que os dois pareçam mais capazes de desempenhar a missão que em Varsóvia foi confiada a Bernardo Silva que a de primeiro médio). Se a ideia da Liga das Nações é testar e aperfeiçoar a ganhar, esta é a altura de ver se a coisa funciona também no modo alternativo.