O problema da Liga das Nações
A Liga das Nações tem tudo para ser parte incontornável do calendário do futebol internacional. Tudo, menos uma coisa, que é haver um calendário do futebol internacional. Haja quem ponha mão nisto.
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Como espectador, gosto bastante da Liga das Nações. Primeiro porque sempre fui adepto de futebol de seleções. Depois porque a Liga das Nações coloca frente a frente equipas de valor semelhante, o que nos permite ver jogos sempre competitivos, uns de enorme qualidade, na divisão de elite, outros a permitirem que assinalemos momentos históricos, como foi a vitória de São Marino sobre o Liechtenstein, no grupo mais abaixo. Como analista de futebol, porém, tenho as maiores dúvidas acerca daquela que é a contribuição desta prova para o que deve ser o jogo, porque ela veio preencher um espaço – o dos desafios particulares – que não tinha, nem pouco mais ou menos, a mesma relevância na ocupação relativa de tempo de jogadores e equipas. E sem a adaptação do resto do calendário, isso gerou um problema impossível de se resolver.
Se lhe perguntar a si, caro leitor, se prefere ver um Portugal-Croácia ou um Polónia-Portugal que contam para alguma coisa ou um Portugal-Rep. Irlanda particular, sem nenhum interesse competitivo, certamente me responderá que o primeiro cenário o entusiasma mais e que do segundo não espera rigorosamente nada nem tenciona gastar o seu tempo a vê-lo. E quase de certeza que faz bem. Se se mantêm nos clubes durante as pré-épocas, os particulares de seleções são hoje uma coisa do passado, cada vez mais reservados apenas para aqueles dias imediatamente antes das fases finais, onde os treinadores querem nivelar competitivamente os jogadores do plantel, que lhes chegam às mãos uns mais fatigados do que outros, estes mais folgados e a precisar de ritmo, ou até testar alguma surpresa tática de última hora. Mas ficámos pior com a troca dos particulares pela Liga das Nações? Se nos abstrairmos de tudo o resto, não. Ficamos mesmo muito melhor. Se olharmos à fotografia geral, sim, ficámos pior. E o problema é que não há quem pense no edifício completo, todos se limitam a olhar para a sua parte da questão, sem espreitar por cima do muro. As seleções culpam os clubes, os clubes responsabilizam as seleções...
Pensemos no interesse imediato do espectador. Não tenho dúvidas nenhumas de que todos se sentirão mais ligados aos dois jogos que aí vêm, o Polónia-Portugal de amanhã e o Escócia-Portugal de terça-feira, do que se sentiriam se em vez deles a seleção fosse fazer dois desafios de preparação. Ainda me lembro de um épico Escócia-Portugal de 1980, no apuramento para o Mundial de 1982, quando um 0-0 cheio de defesas impossíveis face a Dalglish, Gemmil ou Andy Gray me levou na inocência dos meus dez anos a achar que Manuel Bento era imbatível, uma espécie de Super-Homem sem capa nas balizas. Ou de um Polónia-Portugal de 1983, com um golo de Carlos Manuel a valer uma vitória por 1-0 que nos manteve na luta pela vaga no Europeu de 1984, o que encheu de alegria o público de Wroclaw, já alinhado com Lech Walesa e o Solidariedade na rebelião contra tudo o que fosse soviético – e a URSS apurar-se-ia logo naquela noite se não tivéssemos ganho. Qualquer dos jogos desta semana não só tem história como vem inflado pela competição, algo que nunca existiria em torno de um particular mal-amanhado que a FPF viesse a marcar para estas datas. E, mais, mesmo que de repente se fizesse um particular de prestígio, com uma Inglaterra, uma Alemanha ou até um Brasil ou uma Argentina, nada ia levar os jogadores a transcender-se, por uma razão para lá de simples: não haveria pontos em disputa e todos iriam reservar aqueles dez por cento extra que têm lá dentro para quando a coisa fosse a doer.
Neste hiper-profissionalismo industrial do século XXI, os jogadores não têm tempo para gastar em particulares. Então vai pedir-se a Otamendi ou Morita que atravessem o mundo para ir brincar às seleções? Eles já estão tão assoberbados com os jogos em que vão competir que depois não têm disponibilidade para se empenharem em particulares, em jogos de teste. Esse fator, por si só, já condicionaria a perceção que os próprios treinadores teriam desses desafios, pois na verdade não levariam a sério as indicações que os jogadores lhes deixassem. Vivemos uma era em que vão jogadores à seleção para o treinador perceber como eles são socialmente aceites pelo grupo e como trabalham nos treinos. Uma era em que, questionado acerca do facto de não ter utilizado em nenhum dos jogos as novidades que tinha chamado ao último estágio, o selecionador nacional, Roberto Martínez, respondeu que eles “terem ou não terem minutos não é importante”. Importante, para os selecionadores de hoje, é ver como os jogadores interagem uns com os outros para o caso de um dia virem a precisar deles, como os novos se afirmam e assumem a identidade nos exercícios feitos no campo ou mesmo na mesa de jantar. Como os veteranos os recebem e os assimilam. E para isso nem precisam de os pôr a jogar. E muito menos precisariam de os ver num desafio sem qualquer exigência competitiva como acaba por ser um particular, no qual todas as indicações fornecidas podiam ser erradas ou nunca se refletirem num cenário com a pressão da competição e da luta pelos pontos.
O problema, porém, é que o futebol precisa destes pontos de respiração. Primeiro, porque com a pressão dos pontos os selecionadores não vão abrir a porta das equipas à novidade e estas correm o risco de cristalizar. Por mais desinteressantes que se tivessem tornado – e isso aconteceu muito porque a montante e a jusante cresceu a densidade da selva competitiva – os jogos particulares serviam para se darem minutos a novos internacionais, que sem eles vão ficar só a ver até ao dia em que se conjurar a tempestade perfeita que agora vai provavelmente proporcionar a estreia a Tomás Araújo ou Renato Veiga. E por aqui se percebe que quando Portugal atacou a fase de grupos da Liga das Nações de 2019 sem Ronaldo não foi porque Fernando Santos de repente quis ver como funcionaria a seleção sem ele – foi mesmo porque, acabado de chegar à Juventus, o CR7 achou que tinha de se concentrar no clube e abdicar momentaneamente da seleção. Daí que, numa altura em que começa a discutir-se um teto máximo de minutos por época para cada jogador como forma de combater os excessos do calendário, valha a pena perguntar até que ponto é que os técnicos dos clubes e das seleções saberão alinhar-se no preenchimento individual desse limite. Estamos a ver Guardiola ou Ancelotti a deixarem de usar os melhores elementos numa final da Champions porque eles excederam o teto de minutos pelas suas seleções nacionais? Não, pois não?
E aqui chegamos ao ponto fulcral, que é a coordenação de dois mundos. A Liga das Nações é boa? É. É excelente. Mas veio colocar mais peso competitivo na agenda de jogadores cada vez mais assoberbados e retirar no calendário os pontos de respiração que ajudariam na afirmação de quem lhes calçasse as botas uma ou outra vez. O que é terrível. Como se consegue ganhar outra vez essas pausas? Só se alguém recuar. E isso é que não vejo acontecer nos tempos mais próximos.
Ontem vimos Aleksander Čeferin, com um enorme descaramento, a criticar uma possível greve porque só se queixam os clubes de topo, dando a entender que a culpa é só da FIFA e o grande problema começa aqui, FIFA, UEFA, Associação de Clubes Europeus, todos a lutar pelo dinheiro que a saúde dos atletas lhes poderão dar, empurrando a culpa um para o outro, enquanto nos tentam fazer de parvos.
Eu não coloco a questão em jogos particulares vs Liga das Nações, porque quando se falava do problema de excesso de jogos particulares a decisão deveria ter sido pura e simplesmente acabar com eles e não o que acabaram por fazer - manter os jogos mas torná-los oficiais. Porque o problema do excesso de jogos coloca-se em clubes e seleções, uns porque não devia ter ligas de 20 equipas, até 18 já é muito, mais taças como a Taça da Liga, quando aumentam os jogos europeus com playoffs de acesso a playoffs sem sentido algum e ainda vir um Mundial de Clubes no Verão. Os segundos porque inventam jogos em número absurdo. É a Liga das Nações, são os europeus a brincar (os sub-21), são Europeus e Mundiais cada vez maiores, é a Copa América todo o santo ano, campeonato Africanos e Asiáticos em janeiro, clubes e jogadores sem voto na matéria na convocação, salvo quando respeitam quando os jogadores, obviamente, abdicam.
A Liga das Nações não faz qualquer sentido e como disse, não devia ter sido criada. Já existe uma competição de seleções europeias, que aumentaram por ganância, os amigáveis tal como os sub-21 deviam ter acabado.