Santos, a blitzkrieg e a implantação
A entrevista ao selecionador permitiu-me entender um pouco melhor uma das contradições do jogo da equipa nacional. Não tem a ver com ser defensivo, mas sim com conservadorismo e noções de segurança.
A opinião mais ruidosa teima em encostar Fernando Santos à parede por ser um “treinador defensivo”. Nunca achei isso e, aliás, no auge das críticas a esse alegado hiper-defensivismo, durante o último Europeu, escrevi-o (está aqui o texto). Sempre achei, isso sim, que Santos era conservador – e não é a mesma coisa, por muito que o léxico do futebolês teime por estes dias em fazer coincidir os conceitos. Santos será um pouco mais resistente à mudança do que a média dos portugueses, e muito mais do que aqueles que, se pudessem, mudariam tudo a cada sensação de desconforto. No decurso da entrevista que lhe fiz na quinta-feira – e que pode ver um pouco mais abaixo neste texto – confrontei-o com isso, nomeadamente com a insistência dele em veteranos para a posição de defesa-central. Além de serem um tratado para compreender melhor o selecionador nacional, as respostas que ele me deu deixaram-me a pensar que, afinal, os particulares de seleções, cuja substituição pela Liga das Nações todos celebrámos, ainda serviam para alguma coisa.
Onde Santos me deixou a pensar não foi na alusão a Rúben Dias, porque a entrada de Dias na seleção não prova coisa nenhuma a não ser que o jogador tinha demasiada qualidade para ser ignorado – e nem todos os casos são assim tão evidentes, alguns precisam de insistência. E, por si só, a chegada de Dias ao grupo não é suficiente para deitarmos para trás das costas a ideia de que a renovação da equipa (tema sobre o qual também já tinha escrito aqui) tem sido travada na posição de defesa-central. Basta olharmos para as idades dos defesas-centrais que Portugal levou às fases finais das três últimas grandes competições para percebermos isso: em 2016 fomos com Ricardo Carvalho (38 anos), Bruno Alves (34), Pepe (33) e José Fonte (32); em 2018 levámos Bruno Alves (36), Pepe (35), Fonte (34) e Rúben Dias (21); e em 2021 lá estiveram Pepe (38), Fonte (37) e Dias (24). Foram sempre estes porque eram os melhores? É bem possível. Mas isso não erradica uma certa angústia nascida do receio de que depois deles não haja mais ninguém, uma angústia que o conservadorismo de Fernando Santos não tem ajudado a erradicar.
O conservadorismo – que não tem de ser defeito, atenção – pode traduzir-se de várias formas, desde um arreigar às tradições, por convicção, a um receio da mudança, por cautela. Não sou assim tão profundo conhecedor da personalidade do selecionador nacional para saber onde ele se encaixa melhor, ainda que nele haja aspetos, que são do conhecimento público, que podem encaminhá-lo para o primeiro grupo e, depois, o futebol da equipa nacional leve a que sejamos todos tentados a metê-lo no segundo. Tanto a fé católica como a constância no grupo de amigos – o grupo de ex-jogadores do Estoril – que frequentemente se reúne para convívios onde ele costuma marcar presença são facetas desse conservadorismo. Como o é a história que ele próprio recordou a propósito da estreia de Ricardo Carvalho, a quem um segundo de sobranceria numa partida contra o Salgueiros, em Outubro de 1998, levou a que não jogasse mais nessa época e acabasse por ser emprestado pelo FC Porto ao Vitória FC e ao FC Alverca antes de se impor, já com Octávio Machado aos comandos, quase três anos mais tarde. Isso não impediu Santos de recuperar Carvalho para a seleção, quando lá chegou, em 2014. Mas aí, já o central era um tipo experiente e confiável.
E é aí que entra a questão dos particulares. Aquilo que mais tinha a apontar a Santos era o não aproveitamento de jogos de menor grau de exigência – como aquele FC Porto-Salgueiros de 1998, onde apesar do erro de Carvalho os dragões ganharam por 4-1 – para dar minutos a mais gente, de forma a ter alternativas preparadas. Respondeu o selecionador – e já nem sei se foi na entrevista ou nos breves minutos em que ficámos a conversar depois de desligar as câmaras – que esses jogos, contra os Luxemburgos e os Azerbaijões, não lhe servem para isso, porque os adversários não chegam à frente vezes suficientes nem com gente em quantidade para verdadeiramente testarmos alternativas na posição de defesa-central. E que era para isso que lhe serviam os jogos particulares contra adversários mais capazes do ponto de vista ofensivo, esses mesmos jogos particulares que a Liga das Nações veio abolir, para gáudio dos espectadores, que assim podem ver desafios mais interessantes, entre equipas niveladas e competitivamente concentradas, mas não dos selecionadores, que perderam as noites de laboratório de que ainda podiam dispor sem ter pontos em risco. Aliás, imagino o pesadelo que irá na cabeça dos vários selecionadores que, chegados a Junho, terão agora de inaugurar a próxima Liga das Nações com quatro jogos de fim-de-estação, com jogadores fatigados e a pensar em férias ou em desligar de temporadas exigentes.
Admirava-me que, mesmo sendo eu mais Kloppista do que Guardiolista, não seja adepto de um futebol tão baseado em ataques rápidos como o que esta seleção muitas vezes pratica. Mas esta entrevista ajudou-me a lançar luz sobre o tema. A questão é filosófica. Peguemos naquele que a mim me pareceu ter sido o pior jogo da seleção no período-Santos, que foi o 2-1 à República da Irlanda, na qualificação para o Mundial do Qatar, no Algarve, em Setembro do ano passado. Portugal não foi defensivo – tinha dois laterais ofensivos, Bruno Fernandes e Bernardo Silva à frente de Palhinha a meio-campo, Rafa, Ronaldo e Jota na frente. E no entanto o próprio Fernando Santos concordou que o jogo foi um ato falhado. “E não foi por nada”, desabafou. Mas eu acho que foi, que foi por muita coisa, a começar pela filosofia. E finalmente entendi porque gosto tanto do futebol “heavy metal” do Liverpool FC e não me preenche o jogo de bola no espaço da seleção nacional.
Nesse jogo, Portugal tinha avançados que ou queriam bola no espaço – todos eles... – ou que, se a queriam no pé, era para correrem com ela e não para ligarem com os médios ou uns com os outros. Recuperando esse jogo, Santos realçou que “a dada altura só tínhamos um médio, que era o Palhinha”. Onde estavam os outros? Os outros, digo eu, andavam à procura dos avançados. E isso não permitia que houvesse equipa: ou vão todos e se sobe o bloco de forma uniforme – a tal guerra de implantação – ou se mantêm as bases atrás e o jogo fica desgarrado – a “blitzkrieg”, que aqui teve uma origem conservadora. Percebo agora que, mesmo que diga o contrário e se convença disso, porque acredito que o diz de forma genuína, a cautela leva o selecionador a preferir a “blitzkrieg”, a tal guerra por investidas rápidas que mantém a segurança das bases, à implantação no território inimigo, a um jogar alto que ele próprio concede ser mais consentâneo com alguns destes jogadores. E a mim esse futebol, muitas vezes, sabe-me a pouco. Como sabe a pouco a muitos adeptos da seleção.
Os jogos particulares de nada valem, o lugar na selecção ganha-se e a evolução do jogador dá-se no clube e não na selecção. Considero essa ideia da necessidade de "ir lançando" o jogador na selecção para ganhar o lugar, simplesmente absurda, pois é no clube que o jogador trabalha a maior parte do tempo, é aí que se faz jogador, a experiência internacional vai se ganhando, até mesmo nas competições europeias. Os selecionadores pode e devem lançar os jogadores nos jogos a sério ou usam a Liga das Nações para o efeito.
Entrevista bastante interessante a partir do momento em que Fernando Santos esqueceu as generalidades iniciais e recentrou as respostas em factos concretos. Ajudou a perceber alguma da filosofia e das decisões subjacentes, deixando à evidência duas contradições que o selecionador ainda não resolveu. Admite que quer um jogo de 80% de ataque apoiado, mas escolhe, na maioria das vezes, equipas iniciais cujos avançados privilegiam outro tipo de ataque. Depois, admite que Ronaldo tem de jogar mais perto da área, ser essencialmente finalizador, mas nos jogos não é isso que se vê, o capitão tenta acudir a todo o lado e depois falta-nos a referência na área. O selecionador não consegue passar-lhe a mensagem, ou o estatuto de Ronaldo dificulta? (Atenção que continuo a achar que não podemos dar-nos ao luxo de dispensar Cristiano)
De resto, mesmo sem deslumbrar, também não alinho na ideia de que a equipa de 2016 jogava mal. Nem que teve a vida facilitada pelos adversários que encontrou. Podia ter jogado contra mais "tubarões"? Podia. Mas veja-se o percurso da outra finalista e verifica-se que, à exceção da meia-final, os demais adversários foram bem simpáticos. E nós eliminamos a Polónia, excelente equipa, e sobretudo a Croácia, das melhores do mundo, como se provou no Mundial seguinte.
Na questão dos centrais, a explicação é legítima, mas agudiza a preocupação. Mas algum dia será dia para os mais novos jogarem? Há de haver sempre risco. E Pepe apesar de parecer, não é eterno.