Retrato do malabarista enquanto homem
Nani anunciou ontem o final de uma carreira dual, marcada por títulos enquanto foi artista e pela dimensão mais humana quando passou a entender melhor o jogo. Esta é a parte que lhe importa agora.
Palavras: 1394. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
Quando, no último dia de Julho, Nani assinou pelo Estrela da Amadora, surpreendeu-me. Não por ver aquele que foi um dos melhores jogadores portugueses da sua geração vestir a tricolor, defender o clube da sua cidade na que se anunciava como uma luta árdua para fugir à descida de divisão, mas porque, após ter acompanhado com curiosidade a participação do Nani FC no The Soccer Tournament, um torneio de futebol de sete que dava um milhão de dólares de prémio à equipa vencedora, achava mesmo que, aos 37 anos, ele tinha posto um ponto final numa carreira brilhante e se juntara a outros companheiros dessa aventura no estatuto de ex-futebolista. O Nani que vimos nesta quase meia época em que representou o Estrela já não era o jogador que encantou no Sporting, no Manchester United ou na seleção nacional, mas isso não quer dizer que ele tenha prestado um mau serviço ao futebol ao viver ali o seu ocaso. Pelo contrário: o que Nani fez nestes quatro meses humanizou-o e aproximou-o dos miúdos que ele agora quer encaminhar para o jogo, sabendo quais são os sacrifícios necessários para se ser futebolista profissional.
Nani foi sempre exemplo de um compromisso raro entre a ingenuidade do futebol de rua e a adaptabilidade que lhe nascia de uma compreensão cada vez mais total do jogo. A primeira estivera à vista desde sempre no drible que ele já trazia incorporado quando chegou à equipa principal do Sporting, em 2005, no mortal que importou da capoeira para celebrar cada golo que marcava, tantas vezes contra a vontade dos treinadores, que viam na coisa mais um risco do que uma imagem de marca, na escolha da solução estética em detrimento da aconselhada no manual das coisas práticas. A segunda foi crescendo nele à medida que vinha a experiência, contribuindo de forma decisiva para que o embelezamento deixasse de ser prejudicial aos interesses do coletivo. Nani não deixou nunca de ser um malabarista, mas os quilómetros de campo percorridos transformaram-no também no jogador completo e inteligente que ele ainda não era, por exemplo, na noite em que tirou aquele que podia ter sido o golo do século a Ronaldo, empurrando sobre a linha, ou até já para lá dela, em fora-de-jogo aparentemente mal assinalado, uma bola que ia entrar na mesma, rematada pelo CR7 depois de ter batido Piqué e encoberto Casillas com um chapéu. Isto aconteceu em 2010 contra a Espanha campeã mundial e podia ter sido ser o fim de uma bela amizade entre os dois craques que o mercado primeiro unira, em Manchester, e posteriormente separara, quando Cristiano seguiu para o Real Madrid. Não foi – e os dois juntaram-se depois a mais um génio geracional, Quaresma, para dar à sólida equipa nacional de 2016 a chama criativa que lhe permitiu ser campeã da Europa.
As reações de Nani e Ronaldo a esse golo anulado no Portugal-Espanha de 2010 não podiam ser mais emblemáticas do que cada um representava naquela altura. Ronaldo ficou furioso, mandou a braçadeira ao chão com a indignação. Já era um monstro competitivo. Nani abriu os braços e encolheu as mãos, num misto de pedido de desculpas com falta de entendimento do que passara. “O que fiz eu de errado?”, parecia perguntar. Um era talento construído em muitas horas de trabalho, outro o talento puro, o mesmo talento puro que um par de anos antes levara a que sobre ele desabassem as críticas de vários comentadores do futebol inglês quando, na sua primeira época no Manchester United, num jogo contra o Arsenal em que fez um golo e construiu mais dois para Fletcher, teve o descaramento de humilhar Justin Hoyt, evitando a pressão que este fazia em cima de uma bola longa correndo vários metros para trás a controlá-la sempre com a cabeça e celebrizando aquele que ficou conhecido como o “drible da foca”. O futebol de Nani chegou na plenitude quando ele aprendeu a domar esta vocação malabarista com o tal entendimento superior do jogo. Infelizmente para ele, chegou quando já lhe faltavam os maiores palcos – e a exceção aqui foi a seleção nacional. Sacrificado no Manchester United pós-Ferguson, andou emprestado ao Sporting, jogou no Fenerbahçe (era por lá que ele estava em 2016, quando foi campeão europeu), no Valência CF e na Lazio e ainda passou por Alvalade de novo, antes de enveredar pelos circuitos alternativos. Três anos na MLS, pelo Orlando City, e as passagens pelo Veneza, pelo Melbourne Victory, na Liga australiana, e pelo Adana Demirspor, na metade inferior do campeonato turco, não lhe fizeram justiça nem lhe trouxeram mais troféus mas deram-lhe o mesmo que o final de carreira na Amadora: humanização.
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O título europeu de 2016, aos 29 anos, marcou uma espécie de fronteira na carreira de Nani. Por um lado, era a prova de que ele estava já o tal jogador completo, capaz de entender o jogo na sua plenitude. Nani ganhou o Europeu a jogar a ponta-de-lança numa seleção que, à parte Éder, não os tinha. E contrariou com leitura de jogo a falta de argumentos físicos dos seus 69 quilos para a posição, fazendo na mesma três golos que lhe permitiram ser o melhor marcador da equipa, a par de Ronaldo. Por outro lado, contudo, praticamente lhe assinalou o fim de um palmarés que já tinha muitos momentos brilhantes. Para trás ficava o jogador que foi campeão europeu e mundial de clubes, em 2008, a jogar pelo Manchester United. Que além disso tinha sido quatro vezes campeão inglês, que tinha ganho três Taças de Inglaterra, duas Taças de Portugal e ainda duas Taças da Liga inglesas. Nos oito anos e meio em que, desde então, ainda jogou profissionalmente, Nani só ganhou mais uma Taça da Liga e uma Taça de Portugal, as duas no Sporting de Marcel Keizer, e mesmo assim vivendo a segunda final à distância, pois no mesmo dia estava a jogar contra o LA Galaxy na MLS. Podem muito bem ter sido estes oito anos e meio, a experimentar uma Liga em crescimento, outra absolutamente alternativa e irrelevante ou as agruras do que é jogar no fundo da tabela que levaram Nani a entender que nem sempre os sacrifícios que é preciso fazer para se ser jogador de alto rendimento têm correspondência na glória. A glória, nestes meses finais, Nani tê-la-á descoberto no golo que fez ao Boavista, em Setembro, ou na ovação que lhe foi brindada pelo público de Alvalade no momento em que entrou a substituir Dramé, naquele que acabou por ser o seu último jogo como profissional. No mesmo palco em que se tinha estreado, a 10 de Agosto de 2005, rendendo Custódio numa partida contra a Udinese.
Naquele momento, se é que tinha dúvidas, Nani terá ficado com a certeza de que gostavam dele e de que, como diz a canção de Roberto Carlos, o “importante é que emoções” ele tinha vivido. A morte do pai e a vontade de estar com a família acabaram por pesar mais na noção de que já não tinha de estar em campo para ser exemplo. A academia para miúdos aspirantes a futebolistas que anuncia é uma excelente forma de se tonar útil, assim ele tenha a vontade e a capacidade de partilhar ensinamentos. Mas todos. Os dos tempos de glória e os outros também, porque nem todos os que dali saírem vão ser campeões da Europa e do Mundo mas todos poderão contar no edifício global que é o futebol de competição. E para todos o futebol pode vir a ser importante na construção das pessoas que serão. Nem de propósito, estava eu, no sábado, na festa do quarto aniversário de um sobrinho que consegue, no mesmo dia, ser do Sporting, do Benfica e do FC Porto, só para desafiar quem lhe pergunta com um sorriso trocista, e um dos convidados, uns anos mais velho, que joga futebol, andava radiante porque a equipa dele tinha ganho, com remontada, e no fim ainda pôde tirar uma selfie com Nani. É para esses, que provavelmente nunca o viram jogar, que Nani ainda pode contar.