Os magos do espaço
Diminuído em termos de potencial, o FC Porto conseguiu equilibrar a eliminatória contra o Arsenal controlando o tempo e o espaço. Neste contexto, destaca-se quem consegue rasgar ambos.
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Há-de haver por aí muita gente hoje a dizer: “Eh pá, o FC Porto teve uma sorte dos diabos, que apanhou duas vezes um Arsenal desinspirado”. Mas no futebol não há lotarias – nem a dos penaltis. O FC Porto conseguiu equilibrar a eliminatória contra um Arsenal que tem muito mais poderio porque identificou bem onde é que o adversário o podia magoar mais e anulou esses fatores. O FC Porto esteve a dois penaltis de seguir para os quartos-de-final da Liga dos Campeões porque roubou ao Arsenal o privilégio do uso do tempo e do espaço. O do tempo através da nem sempre dignificante redução do ritmo, que não se consegue só metendo pausa com a bola mas também ganhando faltas fora da caixa, ficando no chão mais vezes do que aquilo a que o rival está habituado e por mais segundos do que o jogo pediria. O do espaço pela diminuição da zona jogável do relvado, mantendo as distâncias entre linhas incrivelmente baixas, articulando as subidas para pressão dos homens mais adiantados com o sábio controlo da profundidade pelos de trás e o alerta permanente dos intermédios. Nenhum destes fatores funciona sem que os outros o complementem: não vale a pena sair em pressão com os da frente se os que vêm a seguir não avançarem em cobertura, não é possível subir os de trás se os do meio deixarem a bola ficar descoberta para passes de rotura a explorar a profundidade nas suas costas. Mas, nos 210 minutos que levou a eliminatória, o controlo do espaço por parte do FC Porto foi impecável, orientando os criativos do Arsenal para as linhas laterais através de um posicionamento convidativo ao jogo exterior, de onde depois saíam cruzamentos que convinham muito mais a Pepe e Otávio do que aos atacantes ingleses. Claro que isto só podia funcionar se, ao mesmo tempo, o FC Porto conseguisse ter bola – e a equipa conseguiu fazê-lo. Ontem, se todos funcionaram no plano defensivo, e se o adiantamento de Rice em pressão sobre Varela quando este se metia entre os centrais para presidir à construção limitou bastante o contributo do médio argentino, quem se destacou com bola foram Pepê e Nico González, o primeiro quando conseguia acelerar em posse pelo corredor central, o segundo quando metia passes verticais bem orientados, de modo a transformar momentos de transição em contra-ataques perigosos. Faltou ao FC Porto um momento como o do golo de Galeno no Dragão, uma definição mais bem conseguida dos da frente nos lances em que chegou em situação prometedora perto da área de Raya e acabou por valer o golo de Trossard, depois de uma manifestação de outro dos magos do espaço em campo no Emirates: Martin Ødegaard. O norueguês corporizou na perfeição a ideia segundo a qual se te roubam a profundidade e as entrelinhas é preciso subverter as noções gerais de tempo e correr para o lado. É uma espécie de teoria da relatividade aplicada ao futebol. No lance do golo, recuperou a bola vinda de um corte de Wendell na meia direita do ataque arsenalista e, sem opções à frente, rompeu com o tempo usando o espaço na largura. Correu lateralmente com a bola até à esquerda, de onde pôde aproveitar duas coisas. Primeiro uma episódica desorientação da pressão intermédia portista, talvez baralhada com a diferente temporização da jogada – Conceição, Pepê e Alan Varela estavam com ele no momento da definição, mas não impediram a assistência. Depois, o facto de, tendo-se deixado ficar demasiado longe de Pepe, o central do seu lado, para proteger a largura, João Mário ter apostado de forma errada na cobertura próxima a esse três-para-um em vez de acompanhar a desmarcação de rotura de Trossard nas suas costas. Um momento de disrupção do espaço bastou ao Arsenal para igualar a eliminatória e ao FC Porto para ter de se submeter à maldição dos penaltis. Onde surgiu Raya.
O património do Barça. O FC Barcelona será uma das oito equipas presentes nos quartos-de-final da Champions e fica hoje a torcer por uma vitória do Inter sobre o Atlético Madrid para poder ganhar alento na corrida a uma das vagas europeias no próximo Mundial de clubes – e aos 50 milhões de euros que isso garante. Os catalães não voltaram a perder desde que Xavi Hernández anunciou que vai embora no final da época e abriu palco a uma sucessão de nomes apontados como substitutos, na repetição de um ciclo destrutivo perpetuado pelo presidente Joan Laporta. Sim, este FC Barcelona está a jogar pouco. É incrivelmente frágil atrás, move-se devagar na frente, não fará grande história esta época, mas como as coisas estão não se torna mais provável que venha a conseguir fazê-la na próxima. Porque na sua vertigem gastadora, na busca internacional de um treinador credenciado para substituir o homem da casa que até foi campeão em 2023, o presidente não só está a meter-se outra vez em trabalhos, que com o treinador virão jogadores da sua escolha e as dificuldades em cumprir as regras de fair-play financeiro da Liga, como volta a alienar o principal património do clube, que é a identidade de La Masía. O FC Barcelona voltará a contar internacionalmente quando perceber que é com Pedri, Gavi, Fermín, Baldé, Lamine, Cubarsí e outros saídos da sua forja que tem de construir a sua ideia. E que para a liderar não haverá nunca ninguém como um homem que também por lá tenha passado.
O recorde de Jesus. Jorge Jesus acaba de somar a 28ª vitória seguida com o Al Hilal, da Arábia Saudita, repetindo o 2-0 com que já se tinha adiantado ao Al Ittihad, curiosamente o campeão do país, na segunda mão das meias-finais da Liga dos Campeões Asiáticos. À 26ª tinha igualado o Ajax de Johan Cruijff, à 27ª colara-se a essa instituição do futebol galês que são os The New Saints (mais sobre o clube aqui), à 28ª garante que passa a estar sozinho no Guiness Book of Records como a equipa de futebol que mais partidas consecutivas foi capaz de ganhar. É obra, sinal de um dos grandes méritos de Jesus: a capacidade que ele tem para manter as equipas focadas no rendimento, mesmo que todos os indicadores lhe gritem que aquele jogo em específico não é assim tão importante e se calhar dá para levantar o pé. À sua dimensão, Jesus é um monstro competitivo como Cristiano Ronaldo – e não deixa de ser curiosa a forma diferente como se olha para as últimas etapas das carreiras de ambos. Antes que mo digam, sim, tenho a plena consciência de que o que está para trás na vida dos dois é muito diferente: Ronaldo foi o melhor jogador do Mundo, Jesus só foi verdadeiramente idolatrado aos 65 anos, no Flamengo. Mas continua a haver uma tendência inexplicável para sermos condescendentes face ao que ganha Jesus e ao que perde Ronaldo. Ambos estão no exílio na Arábia Saudita depois de passagens fracassadas por clubes de topo nas respetivas carreiras – que, como já disse têm topos diferentes. Cristiano Ronaldo na Juventus e no Manchester United, Jorge Jesus no Benfica e no Fenerbahçe. Jesus vai ser campeão saudita, está nas meias-finais da Champions e no Guiness. “Ah, mas é na Arábia”, desvaloriza-se. É na Arábia, sim. Na mesma Arábia, no mesmo ambiente protegido em que o capitão da seleção nacional e líder do ataque da equipa no próximo Europeu já perdeu um campeonato, tem outro a caminho e caiu esta semana fora da Liga dos Campeões.
Isto aqui vai mudar. Veja como (e comente):
Outra vez os calendários. Galeno tem 26 anos e antes de falhar, ontem, o penalti decisivo da eliminatória entre FC Porto e Arsenal andaria radiante, porque pela primeira vez vai poder jogar por uma seleção nacional, escolha ele a brasileira – como tudo indica que vai suceder – ou a portuguesa. Aursnes tem 28, nunca jogou a fase final de um Mundial ou de um Europeu, e anunciou ontem que abdica da seleção norueguesa para poder “ter mais tempo e liberdade para dar prioridade a outras coisas além do futebol”. O que está aqui em causa não são apenas as diferenças de personalidade entre dois homens necessariamente distintos nas motivações que os movem. O que interessa debater não é se alguém no seu perfeito juízo pode voltar as costas à distinção que é fazer parte do lote de selecionados para representar o seu país. O que mais me chama a atenção é o encanto do que ainda lá não chegou face a essa possibilidade e o cansaço do que já lá anda há anos, possivelmente por nunca ter sido sujeito à experiência limite que é abdicar das férias para poder estar numa fase final. Faz sentido discutir tudo isto, a começar pelo preenchimento absurdo dos calendários, mas a passar também pelo efeito que as vitórias têm na motivação de cada um. Porque se Aursnes abdica da seleção é porque acha que lhe dão jeito estas duas semanas de tranquilidade que vai ter agora nas datas FIFA, mas também porque sentirá que mesmo com craques como Haaland e Ødegaard a seu lado, a sua equipa nacional nunca será suficientemente relevante a ponto de justificar que ele deixe de fazer umas boas férias em família.